Para ver hoje: joia europeia premiada em Cannes e indicada a 2 Oscars no Prime Video Divulgação / MUBI

Para ver hoje: joia europeia premiada em Cannes e indicada a 2 Oscars no Prime Video

Em “A Pior Pessoa do Mundo”, Joachim Trier abandona o conforto das trajetórias lineares e compõe um estudo de personagem que privilegia o intervalo entre um impulso e o remorso. Julie, interpretada por Renate Reinsve, é o centro de gravidade de um filme que prefere observar a justificar; ela não é tese nem síntese, é movimento. A estrutura, com prólogo e doze capítulos, organiza as idas e vindas de uma protagonista avessa ao mapa definitivo, e a decisão de segmentar o percurso evita a ilusão de um destino único. Cada parte condensa um recorte: uma conversa que desloca rumos, um encontro fortuito que abre uma fresta, uma perda que reorganiza o espaço à volta.

Trier, em parceria com o co-roteirista Eskil Vogt, escolhe o ângulo da observação jornalística sem abdicar da delicadeza. O filme relata mais do que interpreta, descreve mais do que sentencia, e daí nasce sua força. A narração feminina, discreta e pontual, coloca o espectador ao lado de Julie sem sublinhar motivações; o efeito é de proximidade sem condescendência. Em vez de converter contradições em falhas de caráter, o roteiro as trata como dados do real: gente que se apaixona e desapaixona, que muda de ofício antes de saber nomear o que procura, que deseja intensamente e, um pouco adiante, deseja outra coisa.

A montagem acompanha esse ritmo com precisão quase clínica. Cortes desenham elipses elegantes; a temporalidade vacila sem perder coerência; cenas se encerram no rescaldo de uma frase que não precisa de ponto de exclamação. Em um dos gestos mais marcantes do filme, o tempo parece deter-se para que a personagem cruze a cidade em direção ao que quer naquele exato momento. A solução formal não é ornamento: explicita, sem discurso, o que o filme vem enunciando em surdina, o desejo como força organizadora do mundo íntimo.

Renate Reinsve sustenta a protagonista com uma presença que escolhe o detalhe sobre o demonstrativo. O rosto reage antes do corpo; a voz negocia hesitações; o humor comparece sem alívio dramático. A atriz administra uma instabilidade calculada: cada nova convicção de Julie carrega o germe do questionamento seguinte. Esse desenho pede um contrapeso, e ele se encontra em Aksel, vivido por Anders Danielsen Lie, artista mais velho para quem a permanência já é ambição concreta. Entre os dois se estabelece uma economia afetiva de alta voltagem: ele oferece estabilidade e pede projeto; ela oferece intensidade e pede espaço. As conversas de travesseiro, cenas longas, quietas, sem música a conduzir emoção, são o eixo em torno do qual o filme decanta suas perguntas sobre futuro, tempo e limites pessoais.

Aksel não é antagonista; é horizonte. Lie compõe um homem que percebe a erosão do próprio lugar no mundo e, ao mesmo tempo, sente-se convocado por Julie a arriscar um tipo de felicidade que seu repertório não previa. A fragilidade aparece nas diagonais: um silêncio ligeiramente mais longo, uma justificativa que não convence nem quem a pronuncia, o medo de que o amor precise de permanência para existir. Quando “A Pior Pessoa do Mundo” realinha os dois em um momento decisivo, Trier rejeita o melodrama e aposta na sobriedade. O filme preserva a dignidade das perdas: o que se desfaz não deixa de ter sido verdadeiro.

Eivind, interpretado por Herbert Nordrum, surge como a alternativa de uma vida arejada, sem a carga histórica de escolhas já pesadas. O encontro entre os dois numa festa à qual Julie não foi convidada é, em miniatura, o laboratório do filme: um jogo de limites e confissões, curiosidade e recuo, encantamento e culpa. O que poderia parecer desvio dramático se revela vetor central da narrativa; com Eivind, Julie testa a hipótese de um cotidiano menos codificado, e o filme registra as zonas de dúvida sem transformar o dilema em tribunal de moral. Nordrum administra com sutileza um personagem que se quer leve, mas que, à medida que a relação se aprofunda, mostra contradições que não cabem em rótulos.

A fotografia de Kasper Tuxen converte Oslo em campo semântico. Não é cartão-postal; é clima. A luz que se espalha como névoa, os interiores de paredes claras, a cidade que se presta à deriva calculada: tudo conversa com a experiência subjetiva de Julie. Há uma coerência silenciosa entre o enquadramento e a dramaturgia. Nos momentos em que a personagem parece caber na própria vida, a câmera se aproxima; quando a dúvida se alarga, o espaço ganha protagonismo e a figura diminui no plano. O desenho visual recusa a tentação de estetizar a indecisão; investiga-a.

A trilha sonora e o desenho de som operam como extensão do corpo. Canções surgem para bordear estados, não para codificá-los; o som ambiente preserva a presença da cidade, de modo que o drama nunca se desprende do cotidiano. Em um filme sobre decisões íntimas, lembrar que tudo acontece em uma rua qualquer, em uma cozinha qualquer, é método e ética. Também é jornalismo: contexto importa.

“A Pior Pessoa do Mundo” encerra a chamada Trilogia de Oslo, aberta por “Começar de Novo” e continuada por “Oslo, 31 de Agosto”. Não se trata de trilogia no sentido de trama contínua; o parentesco é de investigação: vidas em trânsito, o peso da promessa, a fricção entre ambição e tempo. Se nos filmes anteriores Trier inclinava-se à melancolia como temperatura dominante, aqui encontra um equilíbrio raro entre leveza e gravidade. O riso comparece sem atenuar a seriedade; a comédia é observacional, nunca desculpa.

O roteiro dedica atenção consequente às escolhas profissionais de Julie, medicina, psicologia, fotografia, não para montar um dossiê de indecisão, mas para demarcar a dimensão material dos impasses. Trabalho e amor, no filme, não são planos paralelos. A forma como ela olha para o mundo define, ao mesmo tempo, seu ofício e sua forma de se vincular. Fotografar é verbo de observação ativa; é o gesto de quem precisa suspender o instante para compreendê-lo. Nessa chave, a própria estrutura capitular funciona como edição de um álbum: momentos escolhidos, intervalos omitidos, um sentido que emerge na costura.

Chama atenção a recusa do filme em punir a protagonista por seus movimentos. Julie é, com frequência, inconveniente para expectativas alheias; com a mesma frequência, é honesta em relação à própria fome de experiência. Trier não a santifica nem a condena; devolve-lhe complexidade. Em uma cultura afeita a veredictos instantâneos, esse gesto tem valor crítico. O título provoca, o conteúdo neutraliza a tentação de usá-lo como rótulo. A pior pessoa do mundo talvez seja, no fim, um espelho mal iluminado.

Quando a narrativa se aproxima do desfecho, duas revelações recolocam Aksel no campo de visão de Julie, e o filme encontra seu ponto mais maduro. O reencontro não oferece redenção; oferece tempo de qualidade. Nesses instantes, a direção aposta num grau de simplicidade raro: cenas que poderiam inflamar-se preferem a compostura; diálogos que poderiam explicar-se em demasia apostam na extensão do silêncio. O espectador compreende porque esteve autorizado a acompanhar, desde o início, sem a muleta do didatismo.

Em termos de direção, “A Pior Pessoa do Mundo” confirma Joachim Trier como um romântico lúcido, interessado na logística da intimidade. Seu cinema testa o alcance do detalhe e a resiliência da nuance; acredita que uma vida cabe em microdecisões que, somadas, formam um desenho. O filme chega ao fim sem dar a última palavra sobre Julie. Essa incompletude é escolha estética e ética: personagens não se esgotam quando a câmera para.

Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie e Herbert Nordrum compõem um trio em que ninguém é satélite. A atriz, em especial, organiza o conjunto sem parecer fazê-lo; seu trabalho traduz uma mulher que a cada tentativa de definição escapa por um milímetro. Lie faz de Aksel uma humanidade que se aprende tarde; Nordrum, de Eivind, uma possibilidade de leveza que não ignora o peso. O resultado é um filme que entrega aquilo que promete, acompanhar uma vida em movimento, e, com discrição, amplia o repertório da narrativa romântica contemporânea.

Ao término, permanece a sensação de ter observado alguém constituir-se no atrito entre aquilo que quer e aquilo que consegue sustentar. O jornalismo do filme está no método: olhar atento, contexto, recusa do atalho interpretativo. A literatura está na lapidação dos instantes, na compreensão de que escolhas são também uma estética. O espectador sai com a impressão de que Julie continuará a ajustar o passo quando as luzes subirem; personagens que sobrevivem ao corte são as que interessam.

Filme: A Pior Pessoa do Mundo
Diretor: Joachim Trier
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Revista Bula

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