Ele reinventou a poesia aos 16, abandonou tudo aos 20, traficou armas na África e morreu anônimo aos 37

Ele reinventou a poesia aos 16, abandonou tudo aos 20, traficou armas na África e morreu anônimo aos 37

Havia um menino sujo andando descalço por Charleville. Cabelos hirtos como pensamento em crise, olhos que pareciam nunca descansar. Havia também um trem ao longe, um envelope amassado, um pedaço de pão roubado numa estação esquecida. Havia sempre algo fora do lugar, sobretudo ele.

Parecia ter nascido com pressa demais, como se carregasse o futuro nos ombros. As palavras lhe ocorriam como espasmos, visões, sustos. Aos 15, já escrevia com a violência amarga de um velho arrependido. Aos 20, silenciou. Para ele, a literatura não passava de uma alucinação juvenil, bela, sim, mas incurável. Depois, virou fumaça. Poeira de caravana. Mercadoria obscura. Pólvora. Silêncio. Um gênio? Sim. Mas um gênio em fuga. Fuga de si, da linguagem, de nós.

Rimbaud não escrevia para agradar. Escrevia como quem arromba uma porta com o corpo. Como se suas mãos fossem puxadas por algo anterior à gramática, mais fundo que o próprio desejo. Em 1871, envia a Paul Verlaine o poema “Le Bateau Ivre” e, junto dele, talvez sem saber, a demolição da poesia francesa. Um míssil na sintaxe. Um afogamento encantado. O delírio náutico de um adolescente que via o mundo como vertigem. Tinha 16 anos e escrevia como quem profetiza no meio de um incêndio. Como quem vê antes e paga com a própria linguagem. O que mais se poderia esperar de alguém assim senão o desaparecimento?

As cartas, sobretudo a “Carta do Vidente”, não são declarações de estética. São explosões febris, enviadas de um outro plano de consciência. Rimbaud não discute poética: anuncia colapsos. Fala em desorganização sistemática de todos os sentidos, como quem propõe um método para o delírio. Quer dissolver o sujeito, o idioma, a lógica. “Je est un autre”, escreve. Não como ironia, mas como premissa ontológica. O eu é ficção. Ilusão gramatical. Um espelho rachado. O poeta, dizia ele, seria um alquimista. Mas nunca revelou que ouro buscava na lama. Talvez não houvesse ouro. Talvez a transmutação fosse tudo.

Rimbaud por Verlaine (1872): desenho de Paul Verlaine, feito no auge da convivência tempestuosa com o jovem poeta. Um registro raro de um gênio em chamas

Rimbaud não queria escrever bem. Queria explodir o verbo. E explodiu. O que sobra de sua produção cabe em dois volumes magros. Mas o impacto é desproporcional. Influenciaram tudo: os surrealistas, os beatniks, os punks. Estão em Ginsberg, Patti Smith, Jim Morrison. Mas o eco é mais limpo que a fonte. Porque na fonte havia sangue. E depois, silêncio.

O caso com Verlaine foi uma ópera grotesca, mas também uma tragédia moderna. Paul Verlaine tinha 27 anos: poeta simbolista em ascensão, casado, pai recente, emocionalmente instável, alcoólatra crônico. Arthur Rimbaud, 17: gênio precoce, insubmisso, arrogante. Atraíram-se com violência, como dois corpos sob uma mesma órbita. O amor, se assim podemos chamar, era feito de obsessão, humilhação e destruição mútua.

Primeiro, Londres. Uma cidade industrial e sombria, onde viveram juntos por alguns meses entre 1872 e 1873. Os dias passavam entre opiáceos, pornografia, discussões violentas e produção literária febril. Ali nasceram versos que moldariam o simbolismo e abririam caminho ao modernismo do século 20. A relação, porém, era insustentável. Rimbaud queria anarquia. Verlaine, salvação. Em 1873, em Bruxelas, o ápice: após uma sucessão de humilhações, Verlaine atira em Rimbaud. Dois disparos. Um acerta-lhe o punho. Rimbaud sobrevive. Verlaine é condenado a dois anos de prisão.

O impacto foi imenso. Verlaine mergulhou em fanatismo religioso. Rimbaud, por sua vez, respondeu com um gesto definitivo: escreveu “Une Saison en Enfer”, aos 20 anos. Um autoexorcismo. Texto rude, entrecortado, autoflagelante. Era o adeus à poesia, à juventude, à esperança. O poeta vidente agora se via como farsa. Cospe isso no papel como quem quer arrancar o próprio nome do mundo. Depois, o silêncio. Nenhuma linha, nenhum verso. À poesia, chamava agora de ridícula. Queria ser sério. O escândalo entre os dois não foi apenas íntimo, mas simbólico: um embate entre a velha moral burguesa e o espírito radical do novo século. Rimbaud perdoava, sim, mas já estava noutra frequência. Para Verlaine, foi um terremoto. Para Rimbaud, apenas mais um capítulo na longa fuga da linguagem. Aos 21, desaparece.

E é aqui que começa a segunda vida. Rimbaud, o comerciante. O andarilho. O traficante de armas. Parte para Java, depois Chipre, Aden, Harar. Fala árabe, amárico, somali, italiano. Escreve cartas comerciais em tom burocrático. É discreto, quase anônimo.

O comércio é tão amplo quanto ambíguo: café etíope, peles, marfim, possivelmente escravos. Fornece fuzis Snider-Enfield à corte de Harar. Caminha até 50 km por dia sob sol escaldante. Não há versos. Nem diário. Nem justificação. Um homem sem vocabulário ou com vocabulário demais. O silêncio aqui não é poético, é sintoma.

Mas quem foi o verdadeiro Rimbaud? O poeta que incendiou a linguagem ou o comerciante que trocou versos por fuzis? Farsa ou coerência? Talvez tenha sido alguém que compreendeu, cedo demais, que a linguagem é uma prisão disfarçada de liberdade. Sua ruptura foi, talvez, sua obra mais radical: desaparecer.

Em Harar, o chamavam Abdallah. Nome de muçulmano. Disfarce? Conversão? Ninguém sabe. Andava com sabre. Raramente sorria. Vestia-se com sobriedade quase militar. Escrevia apenas à mãe. Nessas cartas, não há versos. Só relatórios, queixas, cotações. Um funcionário do abismo. Um burocrata da própria extinção. Seu maior poema talvez tenha sido o próprio desaparecimento.

Em 1891, Rimbaud retorna à França após perceber que a dor no joelho era um tumor, diagnosticado como osteossarcoma. Foi submetido à amputação da perna direita em Marselha, mas sobreviveu apenas alguns meses. Tentou retomar a viagem, mas a saúde se deteriorou. Sua irmã Isabelle esteve ao seu lado nos últimos momentos e transcreveu suas últimas cartas. Ele morreu em 10 de novembro de 1891, aos 37 anos, em Marselha. Não houve obituário literário. Mas ali, paradoxalmente, começou a lenda. A ausência virou símbolo, a morte precoce, uma canonização silenciosa. A literatura reconstituiria o desaparecido.

Rimbaud talvez tenha chegado cedo demais. Não formou escola nem discípulos. Deixou uma obra breve e incandescente, seguida por um silêncio quase filosófico. E é isso que o torna inquietante. Nada em Rimbaud é edificante. Sua obra não ensina: fere. E depois se cala. Ler Rimbaud é aceitar não ser acolhido. É encarar a linguagem quando ela já não acredita em si mesma.

Por isso nunca desaparece. Porque não há como absorvê-lo. Sua ausência tem uma presença constrangedora. Como se, ao abandonar a linguagem, tivesse deixado claro: o caminho estava bloqueado. Seguir escrevendo é, de certo modo, insistir numa ilusão.

Décadas depois, os surrealistas o adotariam como profeta. André Breton fez dele o médium do inconsciente poético. O “voyant”. O vidente. Mas esse Rimbaud é só metade. A outra caminhava no sol da Abissínia, redigia cartas comerciais. Essa metade é incômoda. Inassimilável.

E é aí que reside sua potência. Rimbaud é irreconciliável. A tentativa de fixá-lo como poeta, traficante, visionário ou traidor trai sua essência: a recusa em permanecer. Ele não é personagem. É fratura. Falha sísmica na ideia de autor.

Não há narrativa redentora. Nem lição. Só a recusa. A descontinuidade. O traço em brasa deixado por alguém que foi, e se foi rápido demais. Rimbaud não nos deixou uma obra. Deixou uma ausência. Uma ausência que ainda nos observa, com um certo desprezo silencioso, sempre que tentamos fazer da literatura um abrigo.

Rimbaud talvez nunca tenha escrito para comunicar. Escrevia para se livrar. Como febre. Como excreção. Quando cessou a febre, cessou a escrita. Simples assim.

As edições críticas seguem tentando organizar os cacos. Mas tudo isso esvazia o que havia de mais brutal em Rimbaud: a violência do gesto. Nenhum estudioso parece disposto a admitir que talvez ele tenha sido só isso: uma tempestade breve. E depois, o nada.

Talvez o erro esteja em tentar compreendê-lo. Rimbaud nunca quis ser compreendido. O que nos resta é o incômodo. A descarga. A eletricidade mal resolvida de um menino de 1,65 metro, andar encurvado, olhos irônicos, que escreveu como quem vomita um deus.

Rimbaud não nos deixou pouco. Deixou o que pôde. O que suportou. E talvez nos tenha feito um favor ao desaparecer. Porque se tivesse ficado, talvez tivéssemos domesticado sua fúria. E isso, sim, teria sido imperdoável.

Revista Bula

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