A mais tocante história de amor da Netflix — e, sem dúvida, uma das mais belas da história do cinema Divulgação / Annapurna Pictures

A mais tocante história de amor da Netflix — e, sem dúvida, uma das mais belas da história do cinema

Luzes baixas, sombras largas, silêncios cortados por respirações pesadas e um jazz distante. Algo entre o murmúrio e a oração escapa de lábios quase imóveis, uma súplica muda na escuridão. Um casal jovem caminha devagar, mãos entrelaçadas, como se cada passo precisasse ser calculado para não quebrar algo precioso, invisível, frágil demais para ser nomeado. Há uma ansiedade que vibra sob a pele negra, uma ameaça que paira, sem rosto ou voz definida. É Nova York nos anos setenta, e em algum canto do Harlem, Tish e Fonny enfrentam um futuro que talvez jamais lhes pertença completamente.

Barry Jenkins escolheu habitar espaços onde a sociedade não costuma lançar olhares prolongados. Já em 2003, com o curta “My Josephine”, ensaiava uma linguagem de metáforas, carregada de alusões sutis à América pós-11 de setembro, delicada no trato, porém densa em intenção. Anos mais tarde, em 2016, encontrou reconhecimento universal com “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, narrativa premiada sobre um garoto negro tentando sobreviver entre violência, drogas e sexualidade reprimida em uma Miami abandonada pelas promessas americanas. Jenkins ganhava a estatura artística que seu cinema introspectivo e poético merecia, inserindo-se definitivamente no rol restrito de diretores que, em uma única noite, venceram Oscar de Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado.

A filmografia de Jenkins, sempre atravessada por temáticas complexas e de uma delicadeza quase dolorosa, encontrou um novo desafio no romance de James Baldwin, “Se a Rua Beale Falasse”. Publicado originalmente em 1974, o livro expõe a vivência negra urbana nos Estados Unidos pós-direitos civis, com a força e urgência típicas do autor, cuja prosa sempre equilibrou ternura e amargura com precisão implacável.

Com a segurança proporcionada pelo sucesso recente, Jenkins adaptou Baldwin sem abrir mão da fidelidade emocional ao texto original. A narrativa orbita Tish e Fonny, amigos de infância cujo amor cresce naturalmente, como um rio que transborda em silêncio, até ser abruptamente interrompido por uma acusação falsa de estupro contra Fonny, um jovem negro de olhar sincero e porte modesto. De repente, os dois estão à deriva, separados por uma muralha invisível de injustiça institucionalizada, esperando um julgamento que parece nunca chegar. O relógio corre e Tish carrega agora uma vida dentro dela, fruto da breve felicidade arrancada à força.

Nesse contexto, Jenkins explora o amor como resistência, mas evita qualquer otimismo fácil ou discurso simplificador. O filme transita entre tempos de maneira fluida e desestabilizadora, lembrando constantemente o espectador de que o presente de sofrimento se alimenta de um passado ainda inacabado. Não há respiro ou conforto duradouro, e talvez por isso mesmo, as cenas que focam os personagens principais sejam tão pungentes: cada sorriso, cada toque, cada olhar compartilhado parece destinado a desaparecer, tragado por forças maiores e sem rosto.

Há algo no modo como Jenkins filma as emoções que lembra a melancolia terna de Wong Kar-wai, uma espécie de contemplação que é ao mesmo tempo estética e ética. Nicholas Britell, responsável pela trilha sonora, amplifica essa percepção com composições minimalistas e introspectivas, notas de piano que parecem ressoar diretamente dos gestos tímidos e olhares esquivos dos protagonistas.

Visualmente, o filme é impecável. Jenkins e seu diretor de fotografia, James Laxton, optam por cores saturadas, tonalidades vibrantes que criam contraste com a narrativa opressiva. O vermelho intenso, um guarda-chuva aberto na chuva noturna, assume uma conotação quase simbólica, um grito de vida que insiste em existir mesmo sob tempestades constantes. Jenkins entende que, em histórias como a de Tish e Fonny, a beleza visual é mais que mera decoração; é afirmação política silenciosa, resistência estética frente à feiura moral da injustiça.

O roteiro, adaptado com cuidado quase obsessivo por Jenkins, é outro ponto alto. Ele consegue manter a prosa poética de Baldwin intacta, tornando evidente o rigor de quem passou quatro anos burilando cada diálogo e descrição até o limite da exatidão emocional. A participação de Regina King, como Sharon, mãe de Tish, amplifica o peso dramático do filme. Sua presença vigorosa oferece momentos raros de alívio, uma promessa tênue e desesperada de que talvez, apenas talvez, exista uma saída possível para aquela armadilha social e emocional em que os personagens estão presos.

King foi justamente reconhecida pela academia com uma indicação ao Oscar, não apenas pelo talento inegável, mas pela maneira como encarna o sofrimento e a coragem silenciosa de tantas mães negras ao longo da história americana. Sua performance é uma demonstração de força cênica que sustenta emocionalmente grande parte do filme.

“Se a Rua Beale Falasse” não oferece respostas, mas é implacável ao lançar perguntas. Barry Jenkins compreende o peso histórico e social das histórias que conta e recusa qualquer simplificação ou reconciliação forçada. Seu cinema é construído sobre a honestidade brutal de sentimentos incômodos, de esperanças precárias e desejos reprimidos. Assistir ao filme é se permitir uma experiência emocional complexa, onde a indignação convive com a empatia, e a dor encontra beleza em meio ao caos.

A trajetória de Jenkins confirma que sua carreira não é uma sequência aleatória de sucessos ou coincidências fortuitas, mas um projeto consistente de pesquisa e representação das minorias nos Estados Unidos. Seu comprometimento, manifestado na escolha cuidadosa dos temas e na abordagem sensível e consciente da realidade histórica e social de seu país, é o que fundamenta sua autoridade artística e intelectual.

O cinema de Jenkins permanece essencial justamente porque não tem medo de incomodar. Ele não busca validação superficial nem consolo momentâneo. Pelo contrário, exige do espectador atenção, reflexão e engajamento profundo com realidades frequentemente negligenciadas ou banalizadas pela mídia e pelo discurso cultural dominante.

Com este filme, Jenkins reitera sua capacidade singular de transformar histórias pessoais em retratos universais, de alcançar profundidade emocional sem recorrer à manipulação fácil. Sua voz, já consolidada como uma das mais importantes do cinema contemporâneo, continua firme em seu compromisso ético, estético e humano, colocando em evidência o que muitos prefeririam ignorar.

Filme: Se a Rua Beale Falasse
Diretor: Barry Jenkins
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★