E a bunda eslovena?

E a bunda eslovena?

Só nós temos bunda. É algo que nos ensina o sabido professor Caetano Galindo em seu saborosíssimo livro “Na Ponta da Língua — O Nosso Português da Cabeça aos Pés”. 

Ele explica que a gostosa palavra brasileira não encontra parentes nas outras línguas latinas, tampouco se repete nos demais países lusófonos, porque é resultado da miscigenação linguística — aqui estou dizendo com as minhas palavras, então se a expressão for inadequada a culpa é minha e não do Galindo. A bunda, portanto, é produto do caldo cultural, social e étnico que deu na nossa nação. 

Pois “só nós recebemos a contribuição vocabular das línguas que chegaram com a multidão de africanos escravizados que o Brasil fez vir”, pontua o livro. No caso da bunda, é uma metamorfose de termo emprestado do quimbundo, uma das línguas mais faladas até hoje em Angola. Tal idioma tem uma palavra parecida para denominar o traseiro: mbunda. Foi daí que veio a nossa bunda. 

Bunda essa cheia de graça e poesia. Drummond, aliás, escreveu que a bunda “está sempre sorrindo, nunca é trágica”, que “a bunda basta-se”, que “são duas luas gêmeas em rotundo meneio”. E anda “na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente”. 

“A bunda se diverte por conta própria”, percebe o poeta.

A esta altura a curiosa leitora e o indiscreto leitor, ambos atentos, já devem estar reclamando porque estou abundantemente enrolando sem entregar resposta para a pergunta do título: e a bunda eslovena? 

Pois adianto que as pessoas por aqui adoram exibir suas bundas, especialmente no inverno — todo mundo sabe: é esta a hora do ano em que é preciso tirar a bunda do armário. Há bundas peludas, outras lisinhas. Bundas velhas, surradas, quase deterioradas de tanto uso, e bundas bem novas. Descuidados saem às ruas com a bunda suja, muitos não ligam se a bunda está amassada — mas tem gente que gosta de passar a ferro. 

Com profundo conhecimento de causa posso dizer que as bundas daqui são quentinhas por dentro, mesmo que do lado de fora estejam geladas. 

Relapsos não cuidam direito de suas bundas. Alguns até perdem a bunda por aí. Quem encontra uma ou outra assim, normalmente age com respeito: apalpa de leve, retira daquela condição indigna — e depois deixa a bunda à vista para que o dono ou a dona possa recuperá-la dignamente. 

Coexistem na Eslovênia, sem nenhum problema, discriminação ou afetação, bundas de todas as cores. E elas não se limitam à variedade ampla dos tons da pele humana, veja só. Já vi muita bunda vermelha por aqui. E verde, azul, amarela, rosa-choque… Por essa você não esperava, não é, Galindo?

Vamos ao Fran, o dicionário esloveno. Bunda, substantivo feminino, é definido como “zimsko vrhnje oblačilo, ki pokriva zgornji del telesa”. Em bom português: roupa de inverno que cobre a parte superior do corpo. Uma jaqueta, normalmente de náilon, dessas impermeáveis, aqui muito usada em dias de neve, por exemplo. 

Pensava sobre isso quando lia o livro “Na Ponta da Língua”, principalmente quando o Galindo diz que adora a palavra bunda. “E acho megatriste ver de vez em quando uma pessoa adulta se referindo ao seu bumbum. Primeiro porque não acredito que a palavra precise ser tabuizada, ainda menos por um processo como esse, que simplesmente evita dizer o termo que devia pronunciar, repetindo uma de suas sílabas”, afirma o autor. 

Quando nos mudamos para cá, meu filho Chico tinha acabado de completar 5 anos. Lembro-me perfeitamente da alegria dele quando, na volta de um de seus primeiros dias na creche aqui, auge do inverno e com todo mundo usando suas bundas para lá e para cá, recebeu da gente o alvará: a palavra bunda, que não ficava bem no vocabulário de uma criança pequena brasileira, agora estava liberada para uso indiscriminado — desde que no idioma esloveno. O menino ficou repetindo bunda umas trezentas vezes. 

Agora eu quero ver o Caetano Galindo explicar a etimologia eslava da palavra. 

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.