O homem que escreveu um livro inteiro piscando o olho esquerdo enquanto seu corpo morria

O homem que escreveu um livro inteiro piscando o olho esquerdo enquanto seu corpo morria

Na primeira manhã em que se deu conta de estar trancado no próprio corpo, Jean-Dominique Bauby pensou em sopa de aspargos. Não em Deus, nem nos filhos, nem na mulher com quem dividira dez anos de vida, pensou em sopa. Um pensamento involuntário, e por isso mesmo, puro. Um gesto mental que escapava da catástrofe como uma lembrança que sobreviveu ao incêndio sem saber. Era isso, a mente ainda habitava o mundo. O corpo, não mais. Foi assim que começou a escrever.

É estranho, e talvez justamente por isso inevitável, que um dos gestos literários mais radicais do século 20 tenha sido ditado com o único músculo que restava vivo num corpo inteiro, uma pálpebra. Não as mãos, nem a voz, nem os ombros, nem os olhos por completo, apenas uma pálpebra, a esquerda. Jean-Dominique Bauby tinha 43 anos quando um AVC destruiu seu tronco encefálico e o trancou dentro do próprio corpo. Lucidez plena. Mobilidade nenhuma. A medicina o diagnosticou com locked-in syndrome. Ele preferiu outro nome, literatura.

Piscando letra por letra, palavra por palavra, como quem escava mármore com os cílios, Bauby ditou “O Escafandro e a Borboleta”, um livro impossível de ser escrito, e por isso mesmo, absolutamente necessário. O texto começou na escuridão de um quarto de hospital, sem papel, sem caneta, sem tela. Um alfabeto era recitado em ordem decrescente de frequência por sua ortofonista, Sandrine, “minha anja da guarda”, como ele escreve, e uma piscada, breve e exata, selava a escolha da letra. Assim se formavam as palavras. Assim nascia o livro. Uma piscada para cada sílaba. Uma pausa longa entre vogais e consoantes. E a lucidez, sempre. Inabalável, afiada.

Jean-Dominique Bauby não era apenas jornalista. Era uma das presenças mais singulares da imprensa francesa no início dos anos 90. Editor-chefe da “Elle”, voz marcante na “Paris Match”, “Le Matin de Paris” e “Le Quotidien”, Bauby “não escrevia sobre estilo, ele o personificava”. Tinha uma elegância intuitiva, irônica e fluida, um humor que, com uma frase, desmontava certezas. Era, diziam os colegas, um homem feito de palavras e de silêncio. Justamente esses dois elementos viriam a lhe faltar.

O Escafandro e a Borboleta
Um dos gestos literários mais radicais do século 20 foi escrito com uma pálpebra — o único músculo vivo de um corpo morrendo

Bauby, que vivia do deadline, da palavra cravada no tempo certo, teve que aprender a existir num tempo em que cada letra exigia a paciência de um sismógrafo diante do nada. Cada frase escrita, ou melhor, piscada, precisava ser decorada com precisão antes de ser ditada. “Na minha mente, remoo dez vezes cada frase, elimino uma palavra, junto um adjetivo e decoro meu texto, parágrafo após parágrafo.”

Não há súplica no livro. Nenhuma inclinação ao martírio. A dor está ali, mas camuflada sob um humor tão seco que arranha. Bauby não dramatiza, afia. Recusa o altar, o consolo e a piedade. Descreve sua paralisia como quem narra a anatomia de um traje mal desenhado, pesado, cego, impossível de abrir por dentro. Um escafandro que não protege, apenas afunda. Mas, lá dentro, uma mente ainda batia asas. O corpo submergia. A cabeça flutuava. E observava.

Cada capítulo tinha o peso de uma confissão sem apelo. São quase ensaísticos, curtos, agudos, plenos de imagens condensadas que soam leves como fumaça, mas que foram lavradas a ferro. Há passagens inteiras dedicadas à comida, à lembrança de pratos que ele já não podia provar, “cozinho lembranças em fogo lento”, ao toque dos filhos, à vontade de acariciar um cabelo infantil e não poder. À culpa, ao sonho, ao salame. Há humor nos lugares mais improváveis, como quando ele narra o pato de pelúcia de um vizinho de hospital e seu plano mental de extermínio.

Há um momento em que ele se vê refletido num vidro, um rosto torto, um olho costurado, o outro arregalado. Ele não se reconhece. E então, ri. Riu até chorar com a imperatriz Eugênia, cuja estátua de mármore habita o hospital desde o século 19. É uma das cenas mais insólitas e comoventes do livro, a elegância do delírio dentro do escafandro.

Mas o texto respira. Apesar de todo o silêncio, respira. A mente de Bauby não apenas resiste, ela exige. Refaz o mundo com olhos que não piscam à toa. Os corredores, as vozes, as absurdas sessões de fisioterapia, tudo passa por esse filtro clínico, alucinado, exato. A escrita não sangra. Não consola. Não se justifica. Parece uma anotação deixada num cofre, fria, cravada, essencial. Não há espaço para catarse, confissão ou apelo. Há precisão, e isso basta. Bauby não quer ser entendido. Ele quer ser lido, com a frieza que se dedica a um testamento inesperado. Um texto deixado antes do corpo afundar de vez.

Jean-Dominique Bauby
Jean-Dominique Bauby

Quando “O Escafandro e a Borboleta” foi publicado na França, em março de 1997, não foi apenas recebido, foi confrontado. A crítica não sabia onde colocá-lo. Uns o trataram como proeza técnica, outros como milagre literário. Mas Bauby, se tivesse tempo, teria descartado todos esses rótulos com sua ironia habitual. Ele não escreveu para inspirar. Escreveu para continuar pensando com palavras, porque era o que restava. Porque a alternativa era o desaparecimento. Não do mundo, mas de si mesmo.

E talvez por isso, dois dias após a publicação de “O Escafandro e a Borboleta”, Jean-Dominique Bauby morreu. Foi em 9 de março de 1997. Morreu de pneumonia, mas não de rendição. Morreu como quem prende a respiração até o ponto final. Cumpriu o gesto. Entregou o texto. Depois, o silêncio.

A adaptação cinematográfica de Julian Schnabel, em 2007, é bela, sensível, merecedora dos prêmios que recebeu. Mas o tempo do cinema não é o tempo da piscada. O tempo do livro é outro, o tempo da demora, da hesitação, da espera entre uma vogal e outra. Nada ali é natural. Tudo é artesanal.

Ler “O Escafandro e a Borboleta” hoje, num tempo em que a linguagem é devorada em rolagens rápidas e qualquer silêncio parece falha, é quase um desafio ético. O livro exige escuta, desaceleração, presença. É testemunho da lentidão como resistência. Bauby escreve não como quem pede socorro, mas como quem se recusa a dissolver-se. Como quem ainda olha de dentro de um vidro grosso e afirma que ainda está ali, ainda vê, ainda formula frases.

E talvez seja isso o que sobrevive, o gesto de transformar uma única pálpebra em instrumento de linguagem. Fazer da mínima contração muscular um ato estético. Dizer tudo com quase nada. Recusar o silêncio, não com lamento, mas com estrutura. Com forma. Até o fim.

Revista Bula

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