Em “As Pequenas Chances”, Natália Timerman escreveu três livros. O primeiro trata da tradição, o segundo da família e o terceiro e último da História. Estão conectados pelo tênue fio do tema, a morte do pai, que às vezes se distancia para dar lugar a outras experiências vividas da autora. A família judia, com o pai como centro, uma criatura curiosa e dotada de uma austeridade singular e comovente, contagia e define as personalidades dos filhos, compondo um conjunto de características edificantes, como bem conta Natália sobre si mesma e seus irmãos. Os medos desde a infância, os acertos e erros, o aprendizado e a cultura de um grupo que tem na tradição um colosso de normas de comportamento distintas são explorados e explicados em sua introdução, que determina o ritmo sensível e o estilo maduro da narradora. A obra é uma autoficção intercalada de enxertos inventivos e momentos reais de sua vida. O pai tem câncer, está morrendo, e o livro conta seus últimos dias. Há uma busca de elementos do passado que sustentam o desenvolvimento das personagens, especialmente nas figuras dos filhos, e acerta ao mostrar que somos mais de nossos pais do que imaginamos. À medida que o tempo passa, o entendimento desse fenômeno natural define quem somos, quem seremos e como lidaremos com as ações e os dilemas que, necessariamente, teremos que enfrentar.

No capítulo sobre a tradição, Natália mostra a sua família, sem a presença da mãe, que parece ter sido deixada de fora para que a narrativa se concentre na figura do pai, sua importância e sua coesão. Os entes giram em torno do centro de gravidade poderoso, que abastece tudo ao seu redor — sua prole, seu mundo, seus mundos — com sua potência vital que, mesmo nos instantes mais definitivos do fim, ainda carrega a força que produziu um universo particular. Natália chama o pai de Artur para colocá-lo numa distância segura e conveniente para a observação. Sem ser afetada, ela investiga o sol e seu sistema. Enquanto os planetas orbitam, ela reúne informações sobre suas órbitas, suas particularidades e sua capacidade de serem influenciados pelo astro central. Artur, o pai, é uma figura cheia de belos e importantes atributos. É médico, assim como Natália, e isso diz muito sobre a relação dos dois.
A morte do pai é também a morte de um elemento fundamental da vida da autora. Ela parece dizer, em sua prosa, que a morte do pai é o distanciamento da tradição, uma vez que ela se encerra nele. Natália não está ligada à religião de seu pai da mesma forma que ele estava, mas é com a sua morte que percebe os detalhes de uma cultura que estava o tempo todo próxima e definiu, de forma intuitiva, comportamentos e ações, tanto de Natália quanto de seus irmãos. “Morrer não deveria ser um verbo. Morrer é o oposto do verbo. Ao morrer, findam-se as conjugações. O tempo verbal. O tempo.” Todos sabemos, desde bem cedo, que a morte existe. Ela ronda, surge, bate na nossa cara, mas só tem rosto e nome quando nos afeta bem de perto. É apenas quando alguém muito querido morre que pensamos no seu efetivo efeito. A intimidade com uma pessoa é algo extremamente peculiar e raro. Natália conta em seu “primeiro” livro exatamente isso. Não é a morte que nos afeta, é a deserção do ente próximo, daquele que nos dotou de personalidade, que nos tira o chão e faz refletir sobre sua existência e importância. Nesse sentido, os capítulos curtos são epígrafes extraordinárias e refletem o entendimento dessa verdade terrível. Ou seja, para Natália, “A morte é abstrata e dói em detalhes concretos, e essas duas instâncias, a concreta e a abstrata, nunca se encontram, daí a estranheza”.
Em “O Perfume das Flores à Noite”, Leïla Slimani, entre outros temas, também investiga a morte do pai sob outra perspectiva. A morte, nesse caso, significa o nascimento do filho. Em sua autoficção, Leïla afirma: eu vivo porque meu pai já não existe mais. A morte do progenitor, da fonte de exemplos, significa a derradeira instância do aprendizado. Só é possível ter uma identidade depois da morte do pai. Ao discutir literatura e memória, Leïla coloca a história de seu pai nos calcanhares de sua autobiografia de escritora. “Muitas vezes penso que deveria agradecer ao meu pai por ter morrido. Ao morrer, ao se apagar da minha vida, ele abriu caminhos que, sem dúvida, eu jamais teria ousado seguir diante dele. É um pensamento envergonhado, um pensamento triste; no entanto, quanto mais os anos passam, mais tomo consciência da verdade nele. Meu pai era um obstáculo. Ou, pior ainda, meu destino dependia de que meu pai morresse.” A autora confessa que não estava pronta para ser ela mesma, sua melhor forma, a escritora. Seu pai era a âncora que a mantinha fixa numa posição única. Era um sol que nutria, mas impedia que ela originasse sua própria luz individual.

Dois sóis diferentes são os pais das duas escritoras, e os eventos de suas mortes são definitivos para criar o ente contador de histórias que elas se tornaram. “As Pequenas Chances” não existiria sem a morte do pai de Natália. Ao mesmo tempo, uma fração significativa de “O Perfume das Flores à Noite” também não. Não são apenas os livros o reflexo dessa nova vida, mas eles, sim, são o registro de que uma transformação acontece com a morte.
Os outros dois livros de Natália contam a ação angustiante da aventura de sua irmã, Gabi, contra o tempo com o objetivo de reencontrar o pai vivo. Ou melhor, de reencontrar o pai. Mesmo para os ateus mais militantes, o corpo do pai não é o pai — isso não depende de crença. Então, sem uma carga de espiritualidade ou afetação religiosa, Natália conta o tempo que sua irmã passou tentando chegar ao Brasil, vinda do exterior, retornando de uma de suas viagens de trabalho. Aqui, Gabi também é uma das narradoras. A estética do livro muda, mas não compromete. Estamos também sentindo o que Gabi sentiu, e isso funciona. O reencontro é o ponto alto, e a destreza narrativa de Natália revela no capítulo sobre a família a intensidade das relações entre pais, filhos e irmãos.
Para encerrar, “As Pequenas Chances” fala da pós-morte. A vida segue em seu ritmo oscilante e natural. A morte não para tudo, não muda os sentimentos, não transfere as pessoas para um lugar inóspito — pelo menos não aqui. Essa morte, a morte do pai, é responsável pela descoberta da origem. Natália parece traçar um paralelo entre a perda e a conquista. Perder o pai torna-se o tônico para o conhecimento de seus ancestrais, de sua origem no velho mundo, das agruras e sofrimentos de sua família que precisou atravessar o mundo e sobreviver para que sua descendência nascesse em outro lugar, diferente, e tivesse uma chance. E, ao mesmo tempo que entende que nasceu de mulheres lutadoras do passado, que falavam outra língua e faziam parte de outra cultura, ela as invoca como mediadoras de sua passagem, também, de filha para mãe. No reinício da vida, suas heroínas são as mulheres do passado. Num sentido mais abstrato e externo, essas mulheres, esses espíritos — aqui a mãe aparece — irão, segundo Natália, surgir para muni-la da força que precisa para parir seu segundo filho, de parto natural. Há uma dicotomia masculino e feminino interessante. O pai é um exemplo, um forjador. As mulheres da sua família são uma potência para a realização de algo que sua personalidade forte e decidida requer para consolidar um desejo inefável.
Natália construiu um livro belíssimo e necessário. A inspiração e o texto de “As Pequenas Chances” encerram com personalidade e competência assuntos importantes que passam ao largo na literatura por diversos autores. Dito isso, podemos concluir que as chances ofertadas por Natália Timerman não são nada pequenas.