Carlos Drummond de Andrade não fazia listas. Não gostava de hierarquias fáceis nem de superlativos definitivos. Mas em alguma conversa, não se sabe se num ensaio, numa carta ou apenas à mesa com amigos, deixou escapar que havia quatro livros que, segundo ele, cortavam a alma com delicadeza. Não foi uma recomendação, tampouco uma confissão. Foi mais como quem menciona cicatrizes, sem precisar mostrá-las. Os títulos: “As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire. “Folhas de Relva”, de Walt Whitman. “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa. E “Uma Estação no Inferno” com “Iluminações”, de Arthur Rimbaud. Aliás, vale notar que a tradução publicada no Brasil pela editora Todavia optou por “Um Tempo no Inferno”, uma escolha editorial que preserva o sentido da obra original, ainda que troque o termo literal. A lista, se é que merece esse nome, é mais do que um inventário de afinidades estéticas. Funciona quase como um autorretrato indireto, desses que só se completam quando o leitor também se olha.
É possível que Drummond tenha se reconhecido no spleen baudelairiano, no corpo-cântico de Whitman, no abismo íntimo de Bernardo Soares ou no rompimento precoce de Rimbaud com o mundo. Mas talvez não seja bem sobre identificação. O que une esses livros é um certo tipo de dano que eles provocam, discreto, mas irreversível. Não há nada de grandiloquente neles; a ferida não grita, só lateja. São livros que não pedem adesão ideológica nem admiração técnica. Pedem silêncio depois da leitura. E, às vezes, durante. Hoje, essas obras ainda circulam, editadas, reeditadas, anotadas, comentadas. Mas raramente são lidas no tom em que Drummond as lia, não como monumentos, mas como confidências. A escolha desses títulos, atravessando idiomas, geografias e estilos, aponta para uma sensibilidade mais ética do que literária. Uma disposição a ouvir o que é difícil sem disfarce. É curioso como nenhum deles é exatamente reconfortante. São todos, em algum grau, desconcertantes. Mas, no desconcerto, revelam uma forma de beleza que resiste à pressa e à distração. Uma beleza que não consola, mas acompanha. Pode ser que Drummond tenha mudado de ideia depois. Ou que nunca tenha dito isso com essas palavras. Mas os livros estão aí. E a delicadeza com que cortam continua. Basta lê-los com o corpo exposto. E, se possível, um pouco mais devagar.

O “Livro do Desassossego”, atribuído ao semi-heterônimo Bernardo Soares, é uma das obras mais profundas e singulares da literatura moderna. Publicado postumamente em 1982, o livro reúne fragmentos escritos ao longo de décadas por Fernando Pessoa, em forma de diários poéticos e reflexões introspectivas. Sem uma estrutura narrativa tradicional, o texto se apresenta como um mosaico de estados de alma: pensamentos sobre o tédio, a solidão, o cotidiano e a própria consciência. Bernardo Soares, figura ofuscada do mundo, contempla Lisboa e a vida com uma lucidez melancólica e distanciada. A prosa, precisa e lírica, mistura filosofia, estética e confissão. O leitor é convidado a acompanhar uma jornada interna de inquietação e contemplação silenciosa. O livro é inacabado e mutante, com diferentes edições baseadas em manuscritos deixados por Pessoa. Mesmo assim, tornou-se um dos textos mais estudados da língua portuguesa e uma obra fundamental para compreender o universo existencial e literário de seu autor.

“Um Tempo no Inferno” e “Iluminações” são os dois principais livros de Arthur Rimbaud, poeta precoce e revolucionário que escreveu toda sua obra antes dos 21 anos. “Um tempo no Inferno”, publicado em 1873 por iniciativa do próprio autor, é uma narrativa poética em prosa marcada por dor, ruptura e confissão. Em tom autobiográfico, o texto retrata a descida do poeta aos próprios abismos, seu conflito com o mundo e com o amor, especialmente após a relação tumultuada com Paul Verlaine. Já “Iluminações”, publicado postumamente em 1886, é uma coletânea de poemas em prosa que rompe com toda lógica linear e mergulha em imagens visionárias, fragmentadas e altamente simbólicas. Essas obras sintetizam o conceito do “poeta vidente” — aquele que amplia os sentidos e cria novas formas de ver e sentir a realidade. Rimbaud recusa a poesia clássica e inaugura uma linguagem transgressora, profética e onírica. Sua influência ecoa no simbolismo, no surrealismo e em toda a poesia moderna ocidental.

“As Flores do Mal” é uma das obras mais influentes da poesia moderna. Publicada pela primeira vez em 1857, a coletânea de Charles Baudelaire inaugurou uma estética inédita no cenário francês ao explorar temas como a decadência, o erotismo, o tédio existencial e o desejo de transcendência. Dividido em seções temáticas — entre elas “Spleen et Idéal”, “Tableaux Parisiens” e “La Mort” —, o livro busca revelar a beleza contida no sofrimento e na ruína. A linguagem de Baudelaire é precisa, musical e carregada de simbolismo, transformando sentimentos íntimos em imagens impactantes. O poeta não hesita em confrontar tabus morais de sua época, o que resultou em censura e a retirada de seis poemas da primeira edição. Ainda assim, a obra resistiu ao tempo e tornou-se referência para o simbolismo, o decadentismo e a poesia do século 20. Baudelaire moldou uma nova forma de sensibilidade poética, sombria, sofisticada e desafiadora.

“Folhas de Relva” é a obra-prima de Walt Whitman e um marco na literatura norte-americana. Lançado pela primeira vez em 1855 e continuamente revisado até a edição final de 1892, o livro apresenta uma coleção de poemas que celebram a vida, a natureza, o corpo humano e a democracia. Escrito em verso livre — uma inovação na época —, o texto foge das convenções clássicas e se aproxima do discurso oral, fluido e expansivo. A voz de Whitman é, ao mesmo tempo, individual e universal: ele canta a si mesmo enquanto louva todos os homens e mulheres de sua nação. O poema de abertura, “Canto de mim mesmo”, sintetiza essa proposta grandiosa e íntima. A obra, inicialmente criticada por seu conteúdo sensual, acabou sendo reconhecida como um hino poético à liberdade e à experiência humana. “Folhas de Relva” elevou a poesia americana ao status de literatura fundadora e inspirou incontáveis gerações de escritores, artistas e pensadores.