As árvores da minha vida

As árvores da minha vida

Nunca entendi por que as pessoas não gostavam da velha paineira lá da chácara. Era a minha árvore favorita quando criança: suas fortes e exuberantes raízes aparentes aconchegavam na hora do descanso e funcionavam como fortalezas imaginárias em qualquer brincadeira; seus galhos estavam sempre cheios de passarinhos; e, na época certa, seus fiapos de paina cobriam o pasto ao redor: eu pensava que isso devia ser algo parecido com a neve.

Depois vieram outras árvores. No parquinho da pré-escola havia um belo exemplar de ipê-amarelo e foi a primeira vez que vi um desses florear. Ajudei meu pai a plantar a canelinha em frente de casa — e fiquei com aquela bobagem de frase de efeito na cabeça, pensando que só faltava um livro e um filho para me tornar um homem completo. Mais ou menos na mesma época também houve o plantio de uma figueira-brava — em uma propositada alusão à folha que estampa a bandeira de Taquarituba.

Era um tempo em que as preocupações ecológicas se popularizavam ao meu redor, reverberando ainda os ecos da Eco 92 (perdão pela infame construção!). Sonhava eu em um dia me tornar um plantador de árvores em série, alguém capaz de transformar cidades em florestas, praticando um brutal movimento descivilizatório não só necessário como delicioso. Seria uma refundação do mundo, mas sem os germes — quer dizer, sem as pessoas.

Só sonho, claro. Meu ativismo socioambiental se resumia a ler notícias e a me compadecer delas, no máximo chorar espiritualmente pela constante diminuição da cobertura florestal da Amazônia.

Fui-me embora para Bauru e lá roubou meu afeto e minha atenção o jacarandá-mimoso do Parque Vitória Régia (vou pedir ao editor que use esta foto para ilustrar o texto). Quando fiz minha reportagem-gonzo sobre a Avenida das Nações Unidas, lembro-me que contei exatamente quantas árvores compunham a sua flora — mas o dado se tornou irrelevante para meu cérebro e, 20 e tantos anos depois, não faço a menor ideia do número.

Em São Paulo, tive momentos completamente alheios à qualquer árvore. E momentos em que meu amor por elas se resumia a escrever alguma reportagem que tangenciasse o tema. Houve um dia em que determinada assessoria de imprensa resolveu mandar aos jornalistas, à guisa de material de divulgação de evento sei lá o quê, uma mudinha de pau-brasil. Tenho certeza de que, nessa ação, centenas de jovens exemplares de pau-brasil morreram, apodrecidos ou sedentos, em cozinhas de apartamentos de jornalistas paulistanos, apartamentos estes sem nenhum espaço para uma árvore, obviamente.

Ou seja: a ideia era tão boa quanto a de dar um peixinho de aquário dentro de um saco plástico com meio litro de água como lembrancinha em festa de aniversário de criança.

Mas eu estava bastante sensibilizado por árvores naqueles dias, não sei bem qual a razão. De modo que cometi uma crônica, fantasiando que iria libertar minha arvorezinha em algum naco de terra do Parque do Ibirapuera, pois as árvores precisavam ser livres, etc. Foi praticamente uma militância em prol dos direitos humanos das árvores.

Meu último endereço paulistano era no sexto andar de um predinho em Pinheiros e eu gostava que o canto do meu quarto que eu fazia de escritório tinha uma janela na altura da frondosa copa de uma tipuana. A sinfonia dos pássaros começava já na madrugada e as florzinhas amarelas eram uma injeção de serotonina que vinha com os raios de sol ao abrir matutino da persiana.

Quando meu mudei para a Europa, o primeiro ano foi de total epifania ao observar o reflexo das quatro estações sobre a aparência das árvores — eram plátanos e tílias naquela cidadezinha suburbana da Itália, e emolduravam minha caminhada matinal de 2 quilômetros e meio na ida, 2 quilômetros e meio na volta para levar meu filho para a escola. Já na jornada vespertina, para buscá-lo, confesso que não prestava tanta atenção — às 4h da tarde, meus olhos já estavam embotados de preocupações de trabalho.

Pensava em tudo isso, nas árvores da minha vida, quando vi a notícia de que a Prefeitura de Bled tem um concurso para escolher a árvore mais bonita da cidade. E que o vencedor da última edição foi um carvalho que, a meu ver, não tem qualquer relevância estética nem sentimental.

Fico impressionado quando o lugar tem tipo o lago mais bonito do planeta e ainda se esforça para ver beleza em outras coisas. Quando eu mudei para cá, me impus o autodesafio de fotografar algo da cidade durante 30 dias, algo que me encantasse. Havia uma regra, entretanto: que o lago não aparecesse em nenhuma imagem.

A Eslovênia cultiva um justificado orgulho de suas árvores. É um dos cinco únicos países da União Europeia que tem cobertura florestal em mais da metade da superfície — 58% das terras eslovenas são verdes, quando a média do bloco é de apenas 39%.

Mas eu falava sobre o carvalho sem graça que se tornou a miss planta daqui e, confesso, foi com decepção que recebi a notícia de que a árvore mais bonita da cidade segundo o tal certame não é aquela que eu acho a mais bonita. Como assim não perguntaram minha opinião? OK, talvez decepção não seja a palavra, repenso aqui. E isto me faz inclusive rever o que iria escrever — e não vou dar nem espécie nem muita informação a respeito da árvore que me é favorita: vou guardá-la para mim, como um segredo, como elo que me liga a Bled.

Essa árvore, afinal, é a minha árvore, mais minha do que as quatro ainda jovens que plantei em meu quintal. Nos meus primeiros três meses aqui nesta cidadela, eu a avistei quatro vezes por dia em caminhadas que fazia por obrigação, naquele recomeço de vida em que não tínhamos carro.

Era inverno, o chão estava coberto de neve e a minha árvore não tinha folhas.

Eu olhava para ela e pensava: está aí, toda feiosa, mas vai vir a primavera e deixá-la verdinha de novo.

Esta árvore, que chamo de minha, é mais que planta: é metáfora. A brancura ao seu redor não eram as painas da minha infância, mas olhar para ela era também entender que a primavera iria chegar refazendo tudo. E a vida se tornaria, se não fácil, nos trilhos outra vez.

Agora, no verão, podemos aproveitar a felicidade.

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.