Cultura woke, lacração e mimimi: por que até parte da esquerda começou a ter saudade da direita

Cultura woke, lacração e mimimi: por que até parte da esquerda começou a ter saudade da direita

Nos últimos anos, o debate político-cultural tem sido sequestrado por uma lógica polarizada, emocional e nada prudente, onde qualquer discordância vira insulto, e a mais simples tentativa de ponderação é tratada como aleivosia ideológica. Nesse cenário, o movimento woke, nascido da justa reivindicação de afro-americanos por igualdade de direitos e contra o racismo, foi tomado por millennials cheios de não-me-toques, moralistas, mais interessados em afetar virtude do que em ver a vida como ela é e pôr a mão na massa. Cansados da patrulha e da estética do ressentimento, militantes da própria esquerda começam a manifestar uma espécie de nostalgia, lembrando-se dos tempos em que política era, em essência, um espaço de luta — ruidoso, sim, mas produtivo; sempre retórico, todavia aberto a diferenças. A crítica ao wokismo já não parte só da direita conservadora ou liberal. Intelectuais, jornalistas e artistas historicamente ligados ao progressismo começaram a denunciar os excessos cometidos em nome da justiça social. O problema não está nos princípios — a busca por respeito e inclusão —, mas na forma como eles vêm sendo forjados para servir de justificativa à censura, à coação, aos linchamentos, cancelamentos, revisionismos históricos absurdos e a uma atmosfera de intimidação constante. Resulta do fenômeno uma esquerda caricata, que faz questão de furtar-se ao diálogo e só agride. Que lacra, mas não convence.

“Lacração” passou a significar gestos e atitudes performáticos, histriônicos, que se concentram na potencial visibilidade nas redes, em detrimento de qualquer elaboração política séria e racional. É o ativismo que vive de likes, o discurso que só reverbera em bolhas, a indignação que dura 24 horas — ou até o próximo trending topic. A lacração vem, não raro, ladeada por uma narrativa autoindulgente, por meio da qual o defensor de determinada causa oculta-se sob a pele da eterna vítima e exige reparações para tudo. Novamente, a voz cava das ruas lança mão de humor certeiro e institui o vocábulo “mimimi” para remontar a uma sensibilidade exagerada frente à divergência, ao empenho por achar ofensas em todas as declarações, ao culto ao trauma como prêmio. Não é de surpreender, portanto, que até mesmo os setores mais tolerantes da sociedade demonstrem cansaço. Uma parcela da esquerda está enxergando na direita — ou, mais especificamente, em seus círculos mais moderados — algo que outrora lhe era íntimo: coerência argumentativa, clareza de valores e uma capacidade de dialogar com o mundo real e reconhecer-se nele. Enquanto camadas da esquerda perdem-se em discussões identitárias sem fim, em neologismos esotéricos e num léxico cada vez mais restrito ao universo acadêmico-militante, a direita, por mais problemas que tenha apresentado, parece falar a língua do cidadão comum.

A inveja da direita, nesse caso, não é tanto por uma guinada ideológica, mas uma reação à asfixia cultural provocada pelo radicalismo identitário. Trata-se, muitas vezes, de uma nostalgia por uma política menos teatral, menos puritana, menos disposta a transformar cada detalhe da vida cotidiana em campo de batalha ideológica. Em outras palavras, até mesmo entre os que continuam acreditando nos valores da igualdade social começa a haver um reconhecimento de que a cultura woke está prestando um desserviço à própria causa que diz defender. Claro, essa nostalgia também é perigosa. Idealizar a direita, como se ela nunca tivesse sido autoritária, elitista ou franca — e miseravelmente preconceituosa —, é ignorar as razões pelas quais muitos migraram para o outro polo. Mas o fulcro aqui não é a troca de lado, mas a crítica ao empobrecimento da esfera pública. Urge que a política volte a ser um espaço de pluralidade, confrontos produtivos e negociação — e não um campo de batalha onde só há espaço para os puros e os convertidos.

Se quiser recuperar sua relevância e conexão com a sociedade, a esquerda deve abandonar o papel de polícia da linguagem e da moral e retomar imediatamente sua vocação para o convencimento das massas. Precisa reaprender a falar com o povo. Precisa desaprender a demonizar. O wokismo, tal como se desenvolveu, virou um obstáculo à própria transformação social nesses tempos de mudanças, insensíveis à vontade dos homens e a galope. Ao tentar manter o controle de todos os aspectos da fala e do comportamento, mata-se o pensar, empobrece-se a arte, sufoca-se o humor e estrangula-se o debate. Decerto por isso, mesmo aqueles que ainda se identificam com os ideais da esquerda já não se sentem mais representados por seus porta-vozes. Também por essa razão, paradoxalmente, esses indivíduos olham para trás (ou para o outro extremo), saudosos, em busca de algo que ficou na poeira: a coragem de se dizer o que se pensa, a liberdade de errar, a modéstia cortês de assumir que ninguém possui o monopólio da virtude.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.