Há algo muito diferente na cultura contemporânea de Pernambuco. Já faz tempo que a turma de lá gira em outra rotação — vários passos à frente do restante do país. É de lá que sai o melhor cinema (Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro, Marcelo Gomes, Cláudio Assis). O meteoro João Gomes renova a sonoridade do forró, a música de vaqueiro, e se aproxima do rock nacional e da MPB. Ele resgata o espírito de Chico Science, que viu a potência de desorganizar e reorganizar a cultura.
Na literatura, surge agora a escritora Adelaide Ivánova para um público maior. Ela dá mais uma amostra do que é capaz a ambição pernambucana. Se é para fazer alguma coisa, que seja grande. Trata-se de uma forma nova de expressar um Brasil que deu uma série de cambalhotas e piruetas no século 21. Pode-se entender a lógica dos pernambucanos na letra de “Da lama ao caos” (1994), de Chico Science & Nação Zumbi: “Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar”.
Quem quiser saber que conversa é essa, o melhor convite está no livro “Asma” (2024), de Adelaide Ivánova. Um poema épico (isso ainda rende, podem crer) que liga uma história da mulher do imperador persa Xerxes ao universo interiorano do Brasil. São 192 páginas de versos numa linguagem que provoca um troço esquisito em quem lê. É muita doidice numa escrita precisa e que é muito para se ouvir. A sofisticação da letra para filtrar um mundo de referências que vão do erudito à fala das ruas.
Na abertura do livro, a “nota da autora” dá a chave para a leitura. O texto é um dos mais desconcertantes dos últimos tempos. A graça vem da imaginação de Adelaide, sem limites, e do uso de uma linguagem cristalina e muito fincada no chão de sua terra. E olha que ela é desterrada, vive hoje em Berlim (a utopia brasileira para além da globalização). É um regionalismo de cabeça para baixo, tal qual foi o manguebit de Chico Science — que até hoje enlouquece quem escuta.
A obra é formada por seis livros (ou capítulos) para narrar a errância de Vashti Setebestas, a esposa de Xerxes. Ela atravessa tempos, espaços, se transforma em outras pessoas e animais. Adelaide foca no tema da migração — o assunto chave do mundo na atualidade. Como a autora ressalta na abertura, o vai-e-vem pelo mundo implica dar de cara sempre com a ideia de aprisionamento (presídio, manicômio, convento, curral). O migrante será, em algum momento, um preso.
Já na primeira parte, Vashti está no papel de ré de um julgamento. Seus interlocutores que fazem questionamentos são a “galera” da tragédia grega “Oréstia”, Amy Winehouse e a “advogada de Johnny Depp”. Parece confuso, mas a escrita carrega uma clareza sem igual, usando um tom abusado nesse teatro sem limites. A fala do interior de Pernambuco se conecta ao que existe de mais avançado no mundo. “Asma” é um convite para o leitor e a leitora conhecer o quanto são ambiciosos os pernambucanos.
Acerto de contas
A ambição pernambucana, sobretudo a da cidade do Recife, está muito presente nos filmes de Kleber Mendonça Filho. Suas obras são um trabalho de arqueólogo ao escavar as camadas de tempo, debaixo no asfalto quente do Recife. As memórias doces e amargas dos engenhos desativados murmuram nas tubulações dos prédios. A moderna segurança privada, com rádios chiando e camisetas camufladas, anuncia um retorno de um passado que pode ter sido glorioso, mas está mais para doloroso.
“O Som ao Redor” é um filme onde quase nada acontece. E por isso mesmo tudo está em combustão. A câmera, elegante e tensa, percorre uma única rua. Ali cabe um universo. O herdeiro decadente de uma família de senhores de engenho, agora corretor de imóveis; a dona de casa cercada por muros, latidos e câmeras; e o velho coronel urbano, que ainda comanda tudo com o controle remoto da memória. O que parece só ruído — cachorros, portões automáticos — vira uma trilha sonora de vinganças adiadas.
Ao final, os vigilantes noturnos, que surgem como solução para o medo burguês, são também o gatilho de um acerto de contas com o passado escravocrata. O Brasil, nos filmes de Kleber Mendonça, volta disfarçado. Existe algo submerso que foge dos nossos olhos viciados pelo ritmo frenético de smartphones. Quando as coisas escondidas se revelam, só pode haver uma violência em grau assustador. Um exemplo é a cena antológica da reunião de condomínio, na qual se misturam o riso e o horror.
Essa lógica do acerto de contas — com o poder, a memória, a cidade — se intensificou em “Aquarius”. O espaço se comprime ainda mais: um apartamento, uma mulher, uma resistência. Clara, interpretada por Sonia Braga como quem carrega um país nos ombros, é a última moradora de um prédio que a especulação imobiliária quer demolir. Mas ela é, como nos maracatus, “a madeira que cupim não rói”. E quem são os cupins? Os jovens engravatados da construtora, os vizinhos vendidos, os fantasmas do progresso.
O que se mostra ali não é apenas um prédio. É um Brasil onde a memória virou obstáculo, a resistência está difusa na forma de um ruído. É isso: o país perdeu sua forma nas relações sociais e culturais. No fim, mais uma vez na obra de Kleber Mendonça, o filme se fecha em mais um ajuste de contas — simbólico, mas inevitável. Como se Clara, ao recusar o apagamento de sua história pessoal, acionasse uma vingança que vem de longe.
Frente aos sussurros de “O som ao redor” e o grito abafado de “Aquarius”, “Bacurau” representa um urro. A cidadezinha do sertão, invisível nos mapas, funciona como uma utopia possível. Há médica, professor, biblioteca e uma comunidade. Mas a chegada de forasteiros armados transforma a utopia em território de extermínio. Se nos filmes anteriores de Kleber o conflito era interno, subterrâneo, aqui ele explode em sangue coletivo. Impressionam a violência e o modo como ela é narrada.
O próximo passo de Kleber Mendonça é o filme “O Agente Secreto”, que se passa no Recife dos anos 1970. Trata-se evidentemente de um acerto de contas com a ditadura militar e seus fantasmas que assombram o país desde 2018. O artista olha para o futuro, a fim de construir possibilidades, mas é forçado a manter a atenção no que se recusa a morrer do passado. Dessa fricção, nasce a cena de “Bacurau”, que traz um programa de televisão anunciado as execuções públicas no Vale do Anhangabaú.
Caranguejos digitais
Ao final de “Asma”, Adelaide Ivánova cravou uma citação de Chico Science para dar um ponto de conclusão a seu longo poema. “A ciranda acabou de começar!”, cita a escritora. O impacto do jovem Francisco de Assis França Caldas Brandão (1966-1997) na cultura brasileira inda está presente. Poderia ser um “retrato fantasma” de Kleber Mendonça, um fenômeno que saiu daquela cidade para desorganizar as ideias e concepções de cultura. Chico foi capaz de tirar do sério até Ariano Suassuna.
Em 1994, quando Chico Science & Nação Zumbi lançaram “Da lama ao caos”, o Brasil ainda engatinhava na internet. O Plano Real mal havia sido impresso nas cédulas. Mas ninguém imaginava que Recife iria se tornar o centro nervoso da cultura brasileira contemporânea. Mas foi ali, entre os caranguejos do estuário e os cabos de dados de um mundo por vir, que nasceu o “manguebit”. Computadores que faziam música, a energia da ciranda, da embolada, do maracatu, na forma de canção.
A sacada não tinha paralelo. Cruzar o maracatu — ritmo de terreiro, de cortejo e tambor — com a eletrônica europeia e os estilhaços do pós-punk inglês. Não era tropicalismo, pois Gil e Caetano filtraram o rock pelas lentes da música baiana. O manguebit foi uma leitura inversa: o rock peneirando a tradição popular. Ariano Suassuna, defensor do sertão mítico e do romanceiro popular, se tornava cúmplice involuntário da vanguarda de sampler e distorção. Lampião invadiu a pista do Kraftwerk.
Em “A Cidade”, Chico fazia o que muitos urbanistas falham em fazer, ao descrever com precisão quase o ecossistema dos becos, pontes, sons e ruídos do Recife moderno. Já em “Rios, Pontes & Overdrives”, o rap se encontrava com a embolada: “A lama come no mocambo e no mocambo tem molambo/ E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio día/ O carro passou por cima e o molambo ficou lá”. Era o programa estético de colapsar a ordem e baralhar os códigos.
Chico Science reorganizou o rock brasileiro. Tirou a guitarra da Zona Sul carioca e levou para o manguezal. Deu a ele a energia do punk, mas também a genealogia mestiça de Gilberto Gil e Jorge Mautner, com sua versão de “Maracatu atômico”. A novidade vinha da periferia do país, como quase sempre acontece. Mas, dessa vez, com ambição internacional. A batida podia vir de Olinda, mas fazia eco em Berlim. Anos atrás, a Nação Zumbi encontrou os suíços Young Gods.
O livro “Criança de Domingo”, de José Teles, lançado em 2024, dá conta desse movimento com a delicadeza de quem conhece os bastidores da arte local. Mais do que uma biografia de Chico Science, a narrativa é um mapa de um tempo em que o Brasil quis inventar outro futuro a partir de seus restos. O que ficamos devendo até hoje é fazer um país que esteja à altura da ambição pernambucana. É um desejo de ser sofisticado, popular e inventivo ao mesmo tempo.