Não, não era sobre “Homens Elegantes” (2016) a sinopse publicada pela Bula anteontem, mas este artigo é. O romance histórico do gaúcho Samir Machado de Machado talvez seja um dos livros mais pretensiosos já publicados, ainda que, reconheço, Machado de Machado seja digno de nota pelo esforço em misturar sátira, crítica ao colonialismo e uma reflexão sobre as diversas formas de masculinidade. Não obstante, ao embalar sua prosa no papel dourado do barroco, o autor perde a mão. Machado de Machado vai fundo na afetação estilística, como se quisesse provar que conhece os clássicos e domina referências eruditas. Seu texto mais parece um demorado exercício de pavulagem, gênero no qual Jô Soares (1938-2022) é decerto um dos emblemas, passando longe da literatura como arte visceral, feita de suor, lágrimas e sangue. Seu pretenso requinte, composto por floreios cafonas e paródias manjadas, quiçá ficasse melhor num ensaio, ao qual o leitor chega sabendo exatamente o que busca. A suposta elegância de Machado de Machado é a desculpa perfeita para falar muito e dizer pouco, uma maneira garrida de mistificação.

Machado de Machado conta a história de Érico Borges, um tenente que atua como fiscal da alfândega brasileira enviado a Londres, “o coração monstruoso do mundo”, nos idos de 1760, para investigar uma rede de contrabando de livros eróticos, entre os quais uma edição de “Fanny Hill” (1749), de John Cleland (1709-1789), tido como a primeira publicação abertamente pornográfica em inglês. Érico passa a apresentar-se como um certo Barão de Lavos, frequenta os salões reluzentes da nobreza e conhece Gonçalo, um esteta com habilidades culinárias. A partir desse momento, “Homens Elegantes” tenta a todo custo fazer jus a seu título, amalgamando eventos reais como os tremores gêmeos de Londres, em oito de fevereiro e oito de março de 1761, à relação homoerótica de Érico e Gonçalo, cutucando a política contemporânea na República da Sunga com um personagem vilanesco, o Conde de Bolsonaro. A intenção, por óbvio, era, mais uma vez, expor a maldisfarçada homofobia do ex-mandatário, um sujeito indecoroso, um sem-vergonha em todos os sentidos; entretanto, o efeito é inócuo, artificioso, além de minar a atenção do leitor para o que deveria ter importância. Bruna Kalil Othero é mais honesta, mais corajosa e, sobretudo, engraçada ao dizer algumas verdades fesceninas e urgentes a respeito do capitão da reserva, artífice de uma malograda trama contra as instituições no ocaso de seu governo, em “O Presidente Pornô” (2023), certeiro a ponto de o leitor confundir-se quanto ao alcance de sua prosa e não saber mais se ela fala do Brasil — ou Plazil, em referência óbvia e hilariante ao remédio usado no tratamento de distúrbios gastrointestinais — ou se refere a certo ex-chefe de Estado americano, de volta à Casa Branca em 2025, enxovalhado por pagar com dinheiro do contribuinte o silêncio de uma atriz de filmes adultos com quem partilhava os lençóis. Para quem quer chocar a burguesia, Machado de Machado pega leve demais.
Descrições pseudolíricas do sexo entre Érico e Gonçalo, com o tenente demonstrando fazer bom uso da língua ao envolver o bálano do parceiro, vibram no diapasão da comédia involuntária, que constrange mais que alivia, o jeito encontrado pelo autor para levantar hipóteses acerca do conservadorismo de nosso povo desde o descobrimento, herança, segundo ele, da culpa infundida pela religião, em especial, claro, pela Igreja de Roma — reconhecendo no epílogo que em 1830 o Brasil foi o primeiro país das Américas e do hemisfério sul a suprimir de seu código penal o crime de sodomia, quatro décadas após a França, a pioneira, em 1791. Ninguém é obrigado a ser católico, e tem-se a impressão de que o próprio Érico pouco se lixa para as orientações da Santa Sé, preferindo concentrar-se no fausto dos chapéus, brocados e pedrarias, tendo em Fribble um rival bem mais atilado do que ele pensa, capaz de roubar-lhe o consorte. A lembrança de Agostinho de Hipona (354-430) quanto à importância de se correr mundo para que se conheça a vida perde-se num amontoado de rimas e aliterações e, a dada altura, Machado de Machado se cansa da sutileza extrema e chuta o balde, conforme se lê no capítulo 22, “Veado à moda da casa”, ou em “O auriga”, o 26º. Machado de Machado quer ser o Rictor Norton brasileiro, e é possível que chegue lá. Se quisesse ser outro Machado, aí seria mais difícil.
Trechos do livro
O poente encontra Érico desperto, porém imóvel, apreciando o peso do corpo de Gonçalo, deliciosamente solto sobre o seu, que dorme exausto. A luz alaranjada e o calor do braseiro lhe dão uma coloração acobreada; Érico afaga o emaranhado de seus cabelos louro-escuros, a cabeça em seu peito subindo e descendo devagar pelo ritmo de sua própria respiração.
Pois tão cedo me beijou, puxou as cobertas, e pareceu extasiado com a visão completa de minha pessoa, que cobriu com uma profusão de beijos sem poupar parte alguma de mim. Então, ajoelhando-se entre minhas pernas, tirou a camisa desnudando suas coxas peludas e seu duro e ansioso cacete, coroado de vermelho e enraizado em densos encaracolados, que cobriam sua barriga até o umbigo e lhe davam os ares de um pincel de carne.
É ele próprio: o brinquedo dos meninos, o aparelho dos ardores, a gazua dos furores e a chave mestra dos corações; a espada do amor, a viga central dos homens, o pêndulo do mundo, membro-rei das bainhas, formão dos prazeres, bastão dos regozijos e mastro mestre dos deleites — munido de um divinal par de asas.
Do tipo à prensa, da prensa à tinta, da tinta ao papel, do papel à leitura: imprima, não reprima. Conclui-se assim esta narrativa licenciosa que, impressa em material barato n’alguma gráfica clandestina da rua Fleet, é vendida à socapa na loja dos irmãos Abravanel ao número 8 em Paternoster Row; mas facilmente encontrável, à folha solta ou encadernada, por aqueles que frequentam os círculos clandestinos corretos, por um valor que, não sendo possível a modéstia considerá-lo módico, roga-se que seja digno do prazer que seu tamanho proporciona.