5 mapas literários para entender o ciúme

5 mapas literários para entender o ciúme

Sou um homem obcecado por temas e livros. Algumas obsessões chegam cedo. Outras, esperam anos para fincar suas marcas. O ciúme não me interessava. Nem como drama, filosofia, ou sintoma da condição humana. Passava-me ao largo, até que a literatura me puxou pela gola e me obrigou a olhar. Não foi Otelo, Bentinho, nem Anna, os suspeitos de sempre. Foi Gabriel Conroy, o homem pálido, banal, gentil, cheio de melancolia, que no conto “Os Mortos”, de James Joyce, descobre, num relance devastador, que sua mulher Greta carregava um fantasma amoroso no fundo da memória. Um homem que ela amou antes dele. Amor anterior, intocado, inalcançável. E então veio o ciúme, não o da carne, mas o da memória. O mais cruel de todos.

Depois veio Proust. Com Proust, a revelação: o ciúme não é acessório, desvio. É patologia da alma. O ciúme é a própria condição do amor. Swann, prisioneiro da obsessão por Odette, me ensinou que quem ama não sofre por medo de perder o corpo amado, mas porque nunca possui nem o corpo, nem a alma, nem os pensamentos, nem os sonhos do outro. Amar é aceitar que o outro é um estrangeiro.

Então compreendi: o ciúme não é tema. É tropo: no exato sentido que Hayden White atribui à palavra em “Trópicos do Discurso”. Tropo, do grego tropos, significa desvio, inflexão, figura de linguagem, modo de dizer algo por meio de outra coisa. Na narrativa, o tropo não é ornamento, é estrutura do pensamento. E se toda história é contada por meio de tropos, metáforas, metonímias, ironias, sinédoques, então o ciúme é um tropo universal e inesgotável, porque estrutura todas as relações humanas em que haja afeto, desejo, posse, falta, insegurança.

O ciúme é um tropo infinito. Uma matriz narrativa que atravessa séculos, culturas, mitologias, romances, poemas, tragédias, filmes, canções, cartas de amor e bilhetes de rompimento. Onde há vínculo, há ameaça. Onde há amor, há sombra. Onde há proximidade, há a ferida da alteridade, essa certeza de que o outro nunca é nosso, nem estará sob nossa competência emocional.

Se há uma história da literatura, ela é uma história dos modos de representar o ciúme. Dos ciúmes gritados e espetaculares, como o de Otelo, aos ciúmes internos, silenciosos, civilizados, e mais atrozes, como o de Gabriel Conroy. Dos ciúmes inventados, paranoicos, delirantes, como o de Bentinho, aos ciúmes reais, legítimos, fundamentados, que destroem não apenas relações, mas a própria arquitetura interna do sujeito. O ciúme é o parasita perfeito: alimenta-se da falta, da dúvida, do não-saber. E quem ama, nunca sabe tudo.

Cinco obras me vêm como cartografias do delírio amoroso, abrindo uma janela para facetas distintas do ciúme, monstro de muitas faces. Não as visitaremos pelo método comum, que enumera títulos, datas, autores, mas por aquilo que realmente interessa: os temas, as obsessões, os modos como cada uma captura, torce, desmembra e reconstrói o ciúme. O ciúme não se lê, se atravessa. Cada texto será menos um objeto de análise e mais espelho deformado, onde veremos o nosso próprio reflexo.

Entramos num território instável, brejo afetivo. Perseguimos as trilhas da memória, da suspeita, perda, desejo de controle, ânsia pelo impossível. Cada texto nos oferece uma pergunta. O que move quem ama? O que destrói quem ama? O que resta depois da implosão do amor pelo peso de sua obsessão? O ciúme é menos sobre o outro e mais sobre o abismo que existe em cada um de diante da liberdade irredutível do outro.

O ciúme como revelação tardia da alteridade: o outro que sempre foi outro

“Os Mortos”, de James Joyce, é a mais sutil, elegante e devastadora narrativa sobre o ciúme que a literatura concebeu. Não há gritos, cenas, ou brigas, só silêncio. Gabriel Conroy, ao descobrir que sua mulher, Greta, carrega na memória a sombra de um amor anterior (um jovem camponês que morreu, literalmente, de amor por ela), percebe, com uma lucidez que arrebenta o espírito, que nunca possuiu Greta. Nem ele, nem ninguém. A mulher que dorme ao seu lado é irreconhecível. O ciúme não nasce da infidelidade física, nem de olhares, corpos, mas da constatação de que há dentro de cada ser um território vedado onde nem o amor sincero pode entrar. É Joyce despejando talento sobre a dor de descobrir que todo amor é um mistério, e todo mistério é impenetrável.

O ciúme como estrutura da percepção amorosa: amar é desconfiar

“Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, não trata do ciúme como condição. É a estrutura do amor proustiano. Desde Swann, arrastando-se em humilhações por Odette, até o Narrador, em sua possessividade por Albertine, o amor nunca é encantamento: é ansiedade, controle, hipervigilância, medo. Proust faz do ciúme uma máquina epistemológica: o sujeito apaixonado quer saber, decifrar, controlar, saber onde o outro está, com quem, o que faz, o que pensa, quem deseja. Esse saber é sempre impossível, incompleto, frustrante. O amor, no universo proustiano, é interminável investigação, trabalho paranoico de coleta de pistas que nunca se convertem em certeza. Ler Proust é entender que o ciúme é o próprio modo como o amor se percebe.

O ciúme como narrativa: quem narra fabrica seu próprio inferno

“Dom Casmurro”, de Machado de Assis, é um romance sobre o poder da narrativa na construção do ciúme. Bentinho é um narrador que fabrica, organiza, edita e coreografa sua própria história de desconfiança. O ciúme é arquitetura do discurso. Cada lembrança, detalhe, episódio que Bentinho escolhe contar está contaminado pela suspeita que ele constrói e reforça, curadoria da memória paranoica. E a genialidade de Machado reside nisso: não importa se Capitu traiu ou não. O que importa é o que Bentinho, e nós, leitores, cúmplices, escolhemos acreditar. O ciúme se torna performance narrativa, ficção que pode ser mais verdadeira que a própria verdade.

O ciúme como pulsão de morte: amar é querer o impossível

“Anna Kariênina”, de Liev Tolstói, encena o ciúme como doença terminal da alma apaixonada. Anna, mergulhada numa paixão avassaladora por Vronski, percebe que amar é viver sob a ameaça da perda. O amor absoluto exige algo que o outro nunca pode dar: a abolição da sua liberdade. O ciúme de Anna não é fútil, é existencial, tentativa desesperada de congelar o tempo, impedir que o desejo se desloque, mude, se esfrie, se vá. Isso é impossível. Tolstói descreve o modo como o amor se transmuta em angústia, a angústia em paranoia, a paranoia em gesto extremo. Anna morre: amar é insustentável.

O ciúme como tragédia: quando a dúvida se torna destino

“Otelo”, de William Shakespeare, é a anatomia precisa e universal do ciúme como catástrofe. Otelo não ama Desdêmona, deseja possuí-la na totalidade, quer que ela seja não esposa, mas extensão de si mesmo, projeção do seu ego. A dúvida, semeada por Iago, não encontra em Otelo resistência, porque a estrutura emocional de quem ama é frágil, insegura, dependente. Shakespeare compreendeu que o ciúme não precisa de provas ou indícios. Basta uma rachadura para o edifício desmoronar. Nesse desmoronamento, não sobra nada. Só a certeza de que se destruiu aquilo que se queria preservar. Otelo é uma tragédia amorosa e do desejo de controle sobre o que nunca pode ser controlado: o outro.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.