Recorde insano: este livro tem uma única frase com mais 1.280 palavras (e você achava que escrevia demais)

Recorde insano: este livro tem uma única frase com mais 1.280 palavras (e você achava que escrevia demais)

Ninguém escreve assim por acaso. É preciso um tipo muito específico de teimosia, de obsessão, talvez mesmo um cansaço existencial tão profundo que só encontre repouso na gramática prolongada do delírio. William Faulkner não economizou no fôlego quando redigiu sua sentença monolítica em “Absalão, Absalão!”, e há algo de perverso ou de sagrado nessa escolha de amarrar mais de 1.280 palavras com o fio tênue e elástico da mesma respiração. A frase entra para o Guinness Book em 1983 como a mais longa da ficção ocidental, o que é, convenhamos, uma categoria que só poderia existir em um mundo que calcula o excesso com medalhas. Mas esse não é um recorde de exibição, é um colapso estético, uma performance de descontrole textual que escapa às métricas usuais de legibilidade, clareza, elegância. Como o próprio livro.

A frase em questão aparece no capítulo sexto e atravessa como uma febre o relato de um personagem cuja voz já está, de antemão, comprometida pelo tempo. Faulkner constrói um labirinto onde o centro nunca é alcançado, onde a narrativa dobra sobre si mesma, gira em círculos concêntricos, repete nomes e cenas e frases como se tudo já tivesse acontecido antes, e de novo, e de novo. A estrutura da frase segue essa lógica de espiral: tudo retorna, mas com um leve desvio. Como a memória. Como o trauma. Como a história dos Sutpen, essa família marcada por ambição, incesto e ruína, que se desdobra como se o passado fosse um quebra-cabeça quebrado.

Absalão, Absalão!
Absalão, Absalão! de William Faulkner (Companhia das Letras, 400 páginas, tradução de Celso Mauro Paciornik)

Mas a verdade é que essa frase não é lida, é atravessada. Ou suportada. Ou enfrentada. Ler Faulkner nesse estado é como ser arrastado por um rio cujo curso se conhece apenas por boatos. Não há margem, não há bússola, não há pausa. Há vírgulas, muitas, mas nenhuma dessas vírgulas serve ao conforto do leitor, são antes obstáculos, deslizamentos de terreno, bifurcações onde tudo pode ser perdido. E é perdido. A frase não quer ser entendida, quer ser vivida. Ela encarna uma recusa explícita à obediência, à obediência do ponto final, da cadência previsível, da lógica aristotélica.

Essa escolha não é apenas estilística, é política. No Sul de Faulkner, esse Sul devastado pela escravidão, pela Guerra Civil, pela vergonha e pelo mito, as histórias não acabam, apenas continuam a apodrecer no silêncio das casas decrépitas. A forma da frase é um comentário sobre isso. Sobre a impossibilidade de encerrar, de resolver, de expiar. É uma frase contaminada por fantasmas. E o narrador, ou os narradores, pois o romance multiplica as vozes ao ponto de não se saber mais quem fala, apenas repete, reconstrói, remói.

É fácil, em tempos de frases curtas e headlines apressadas, tratar esse tipo de escrita como um excesso anacrônico. Um exagero. Uma exibição de virtuosismo verbal. Mas esse julgamento seria superficial. Porque há, nesse gesto de prolongar a frase até o limite da sanidade sintática, uma espécie de ética. Um comprometimento radical com o modo como a memória de fato funciona. E a memória, sabemos, não obedece à gramática.

Talvez o mais perturbador seja isso: a frase nos lembra que pensar é um processo desconfortável, sem pausas programadas, sem conclusões fáceis. Pensar dói. E Faulkner escreve como quem está tentando pensar algo que não pode ser pensado, o que significa, evidentemente, algo que não pode ser dito, mas que insiste em ser escrito. Por isso a frase não para. Porque não chegou onde precisava chegar. Porque ainda falta uma palavra. Sempre falta.

Ler “Absalão, Absalão!” é uma experiência de exaustão. Mas não no sentido vulgar de difícil. É uma exaustão mais parecida com a de carregar um cadáver familiar nas costas sem saber onde enterrá-lo. Uma fadiga de séculos, de raças, de códigos morais desintegrados. A linguagem do romance, assim como sua frase recordista, não serve à transparência, mas à opacidade. É como vidro fosco: percebe-se o vulto, mas não o contorno. E talvez isso seja mais verdadeiro do que a nitidez.

William Faulkner não economizou no fôlego quando redigiu sua sentença monolítica

Houve um tempo em que a literatura aceitava esse tipo de risco. Um tempo em que o leitor não era cliente, mas cúmplice. Hoje, não há muito espaço para esse tipo de sentença nas livrarias. Frases longas são vistas com desconfiança, como se quisessem esconder algo. E querem mesmo. Porque há coisas que não cabem em frases curtas. A dor da guerra, por exemplo. A culpa ancestral. O racismo como maldição genética. O desejo incestuoso como metáfora de um país que se ama doente.

Não é à toa que Faulkner escrevia de modo tão oblíquo. A verdade, para ele, era sempre indireta, torta, elíptica. A frase mais longa do mundo é, talvez, uma tentativa desesperada de capturar essa verdade sem nome. De registrá-la não como conceito, mas como sensação. O que importa não é o que se entende ao fim da frase, mas o que se sente enquanto se a lê. E o que se sente é pânico, vertigem, fascínio, náusea, desamparo. Tudo ao mesmo tempo.

Talvez por isso ela sobreviva ao recorde. Porque ser a maior, no fundo, é o de menos. É a menor coisa sobre ela. O que importa mesmo é que essa frase continua respirando. Como um organismo doente. Como um sonho ruim que nunca termina. Como uma língua que fala sozinha no escuro. Ela continua ali, à espera de outro leitor que se disponha a perder o fôlego. A esquecer onde estava. A não voltar mais.

E quando isso acontece, quando se lê a frase inteira, sem buscar sentido, sem caçar sujeito ou predicado, apenas deixando que a correnteza leve, algo muda. Não se sabe bem o quê. Mas muda. Como se a cabeça tivesse sido reconfigurada. Como se a linguagem tivesse encontrado, por um segundo, um modo de dizer o indizível. Não com clareza. Mas com verdade.

E é isso que fica. Não a proeza. Não o Guinness. Mas a ferida. A frase mais longa da literatura não é uma frase. É uma cicatriz.


A célebre frase “Absalão, Absalão!”, de William Faulkner, aparece no capítulo 6 da obra e, em português, foi traduzida por Celso Mauro Paciornik (Companhia das Letras) como uma única e longa frase — mantendo a estrutura labiríntica, as repetições e o ritmo torrencial do original.