O livro que mais pessoas mentem já ter lido

O livro que mais pessoas mentem já ter lido

“Em Busca do Tempo Perdido” é, afinal, muito mais que um livro; tornou-se uma espécie de monumento silencioso, daqueles que permanecem imóveis na paisagem, testemunhando gerações que fingem conhecê-lo profundamente. A maioria dos leitores conhece Marcel Proust por osmose, repetindo frases feitas ou clichês literários que atravessam o tempo sem resistência, como se cada leitor soubesse exatamente sobre o que fala. Mas quase ninguém chega ao fim do primeiro volume, quanto mais dos sete que compõem a obra inteira.

Talvez seja a culpa, essa sombra insistente, que impede muitos de admitir o fracasso diante da prosa interminável de Proust. Alguns afirmam já ter lido na juventude, numa memória convenientemente vaga, enquanto outros recorrem ao argumento de que é o tipo de leitura que “exige maturidade”, empurrando eternamente para frente um compromisso que nunca será honrado. E, como em todo bom pacto de silêncio, ninguém desafia ninguém. O mito prevalece, forte como poucas verdades podem ser.

No caminho de Swann, de Marcel Proust (Biblioteca Azul, 558 páginas, tradução de Mario Quintana)

Há quem diga que o problema está na própria estrutura do romance, no modo como o tempo escorre pelas páginas sem se importar com o leitor apressado; outros culpam o estilo de frases sinuosas, cheias de voltas e reviravoltas sintáticas que exigem atenção absoluta e disposição quase religiosa. O texto de Proust não aceita distrações, não tolera leitores apressados ou superficiais. E talvez seja justamente essa exigência severa que provoca o fascínio ambivalente, meio temor, meio reverência, despertando um respeito estranho por uma obra que poucos têm coragem de encarar.

Mas há algo além disso. Talvez “Em Busca do Tempo Perdido” seja menos sobre a dificuldade da leitura e mais sobre o confronto silencioso com a passagem do tempo, com as perdas, com as memórias que preferimos não revisitar. Ler Proust é, antes de tudo, aceitar um convite desconfortável: encarar as lembranças que guardamos numa espécie de porão emocional, enterradas sob camadas protetoras de esquecimento voluntário.

Por isso, tantos preferem fingir a leitura, construir uma ficção paralela onde dizer que “já leu” é quase o mesmo que ter vivido plenamente, experimentado as sensações narradas, compreendido as complexas emoções do narrador, suas obsessões, arrependimentos e sutilezas psicológicas. Admitir que nunca avançou além das primeiras cinquenta páginas é reconhecer uma vulnerabilidade maior, a incapacidade de lidar com a lentidão necessária para absorver uma narrativa que mais sugere do que explica.

Talvez seja essa a razão pela qual o livro continua sendo repetidamente mencionado, citado em listas, evocado como símbolo de profundidade intelectual. É como uma moeda social, uma espécie de prova sutil e intangível de pertencimento a um grupo seleto que se pretende culto e sofisticado. Mas a realidade é mais prosaica, mais humana: poucos atravessam de fato a barreira invisível das primeiras páginas.

E, no entanto, quem admite ter parado cedo demais perde uma oportunidade rara: descobrir, no ritmo vagaroso e detalhista de Proust, um espelho perturbador de si mesmo. Ao desistir prematuramente, deixam de lado não apenas um livro, mas a chance de compreender melhor as próprias lembranças, os próprios arrependimentos, as pequenas felicidades efêmeras que, com o passar dos anos, se tornam preciosas exatamente porque foram perdidas.

Talvez a verdadeira busca não seja pelo tempo perdido, mas pela coragem suficiente para admitir que não se pode ler tudo, nem compreender tudo. E talvez essa humildade literária seja tão valiosa quanto a leitura integral das milhares de páginas que poucos, muito poucos mesmo, conseguiram realmente atravessar.