Julio Cortázar é idolatrado por leitores que fingem gostar do que não entendem

Julio Cortázar é idolatrado por leitores que fingem gostar do que não entendem

Não era novidade alguma que muita gente carregava livros dele embaixo do braço como se fossem medalhas, títulos, troféus que permitiam acesso a rodas fechadas, grupos seletos e encontros cheios de condescendência. Era Cortázar como grife, Cortázar como um crachá invisível, uma senha cultural pronunciada baixo, quase sussurrada, com um sorriso de quem conhece segredos que ninguém mais alcança. Ele percebia isso nas livrarias, nas rodas acadêmicas, nos grupos online dedicados a literatura, nesses cantinhos esquisitos onde gente bem-vestida se juntava pra beber vinho barato em copo caro e fingir que um trecho qualquer do “Jogo da Amarelinha” dizia coisas extraordinárias sobre a vida. E ele sabia que não dizia nada disso, que na maioria das vezes era um jogo mesmo, um quebra-cabeça, um divertimento literário — coisa bonita, sim, feita para provocar, cutucar e mexer com expectativas narrativas — mas não aquela revolução literária que alguns repetiam quase mecanicamente, como mantra.

Ele próprio tentou ler “Rayuela” umas três, talvez quatro vezes, sempre voltando ao início porque se perdia nos capítulos intermediários, esquecendo se devia ir para o capítulo seguinte ou pular para outro, preso numa espécie de labirinto narrativo que não fazia sentido nenhum, não da maneira que ele gostaria que fizesse. E isso incomodava profundamente, como aquela loja antiga que fechou antes mesmo dele nascer, mas da qual todo mundo falava com uma nostalgia falsa, forjada, que ninguém nunca realmente sentiu. Então ele desistiu de Cortázar por um tempo e voltou a Hemingway, não porque fosse mais fácil, mas porque era mais honesto, mais claro, mais sincero nas palavras, mais direto ao ponto.

Mas Cortázar continuava lá, no meio das prateleiras, observando-o com uma capa meio gasta, meio amarelada, como quem desafia alguém a desvendar algum segredo obscuro, mesmo que não haja segredo nenhum. A coisa toda tinha virado uma encenação literária, uma encenação social, onde leitores fingiam entender a complexidade, a estrutura narrativa revolucionária, as experimentações estilísticas, mas no fundo eram como ele, perdidos numa narrativa feita para ser difícil, para ser desconfortável. E não que dificuldade fosse ruim, claro que não, mas havia algo de errado, ele achava, em celebrar o hermetismo como virtude absoluta, como valor supremo de qualidade literária.

Lembrou-se de um professor na universidade que passava duas horas inteiras falando do genial capítulo 68, ou seria 73, de “Rayuela”, e explicava longamente sobre como aquilo transformava a relação do leitor com a literatura para sempre, mas no fim da aula ninguém dizia nada, nem perguntava, e todos anotavam apenas porque parecia importante, parecia sério, parecia erudito, e não porque realmente entendessem o que estava sendo dito. Na verdade, ele mesmo, agora que pensava nisso, nunca realmente entendeu aquele capítulo, e o professor talvez também não, talvez ninguém entendesse, talvez fosse um tipo de teatro acadêmico do qual todos participavam porque era mais fácil participar do que admitir ignorância, admitir dificuldade, admitir cansaço.

Cortázar tinha virado isso: uma prova de resistência intelectual, uma medida de inteligência literária. Quanto mais alguém afirmava entendê-lo, mais respeito ganhava nos círculos certos, aqueles mesmos círculos que se reuniam em cafés meio escuros, discutindo literatura argentina e jazz obscuro como se fossem partes complementares de uma sabedoria inatingível. E ele próprio tinha feito isso algumas vezes, tinha dito coisas vagas como “Cortázar revolucionou minha percepção da literatura” ou “o experimentalismo dele desafia nossos conceitos tradicionais de narrativa”, sabendo no fundo que eram frases vazias, feitas apenas para não se destacar negativamente, para não demonstrar que ele não era tão sofisticado quanto aparentava ser.

Então ele tentou novamente, desta vez com contos curtos, os tais famosos contos curtos que diziam ser mais acessíveis, mais leves, e realmente havia algo ali que ele gostava mais, que conseguia acompanhar com menos angústia, menos cansaço. “Casa Tomada” parecia mesmo mais simples, embora ainda perturbadora, mas aí estava outra vez aquela sensação: seria mesmo tão profundo quanto diziam ou ele é que estava inventando profundidade para justificar o tempo gasto? Era difícil saber, talvez fosse melhor nem tentar descobrir. Porque não havia garantia alguma, e ele pensou por um instante que talvez toda literatura fosse um pouco assim, um exercício meio forçado, meio artificial, feito para legitimar nossas angústias pessoais através de textos alheios que pouco têm a ver com elas.

Aquele grupo de leitura, aquele mesmo, onde alguém uma vez levou um vinho que ninguém gostou, mas todos elogiaram, discutia Cortázar quase todo mês, sem nunca avançar, sem nunca chegar à conclusão nenhuma, como um ritual repetido à exaustão por leitores cultos que tinham medo de admitir que talvez a literatura, pelo menos aquela literatura, não estivesse dizendo muita coisa para eles. E então vinham as palavras como “desconstrução narrativa”, “experimentalismo formal”, “ruptura das expectativas”, e todos assentiam com expressões sérias, sérias demais, como se realmente entendessem cada sílaba, cada frase dita, e não apenas repetissem fórmulas que alguém antes deles já tinha repetido, repetido, repetido até cansar.

Ele mesmo, enquanto segurava aquele copo já vazio, sentiu vontade de dizer alguma coisa, perguntar se mais alguém ali achava aquilo tudo exagerado, cansativo, forçado. Se mais alguém ali sentia que lia Cortázar por obrigação, por convenção, por medo de não pertencer, mas no fim não disse nada, porque era melhor não dizer, era melhor apenas sorrir e concordar com tudo que diziam, porque talvez fosse assim que se lidava com certas coisas na vida, com literatura, com música, com filmes obscuros, com todas aquelas referências culturais que usamos para construir nossa própria imagem intelectual.

Mais tarde, já em casa, ele abriu novamente o livro, leu páginas soltas, procurou sentido onde talvez não houvesse sentido nenhum, e lembrou-se do professor, dos colegas, da roda intelectualizada, daquela sensação de cansaço, de inadequação, da certeza silenciosa de que ninguém ali entendia mesmo, mas fingia tão bem que talvez fingir tivesse virado uma espécie de entendimento alternativo, válido à sua própria maneira torta, absurda, meio constrangedora. E se fosse mesmo isso? E se a literatura fosse isso, um pacto silencioso, meio cínico, meio confortável, onde todos fingem entender coisas complicadas pra não ter que lidar com coisas mais simples e mais reais? Talvez ele estivesse errado, talvez estivesse exagerando, talvez fosse apenas cansaço, talvez fosse apenas aquela frustração com capítulos embaralhados, histórias interrompidas, personagens desconexos.

Mas ele não ia mais fingir que entendia Cortázar, não ia mais citar trechos obscuros como prova de inteligência. Ele não precisava mais disso. Não precisava provar nada a ninguém, nem ao grupo de leitura, nem ao professor distante, nem àquelas pessoas nas livrarias com expressão sábia, fingindo compreender livros que ninguém compreendia. Talvez Cortázar mesmo nunca tenha desejado nada disso, talvez ele tenha sido só um escritor brincando com palavras, com narrativas, e todo o resto tenha sido invenção nossa, medo nosso, insegurança nossa.

Fechou o livro com cuidado, colocou-o de lado. Talvez voltasse a ele algum dia, talvez não. E estava tudo bem. Talvez ele não precisasse entender Cortázar, talvez ninguém precisasse. Talvez bastasse aceitar que nem sempre entendemos o que lemos, que nem sempre gostamos do que fingimos gostar, e talvez, afinal, fosse isso mesmo o que Cortázar queria dizer — ou talvez não. Talvez nem ele mesmo soubesse. E talvez isso fosse literatura, no fim das contas, aceitar não entender, aceitar dúvidas, aceitar a confusão. Talvez fosse só isso, ou algo assim. Não sabia ao certo, mas pela primeira vez, não se importava em não saber.