Salmo de um pagão, de número 69 — dr. Alonso Monteiro da Silva

Salmo de um pagão, de número 69 — dr. Alonso Monteiro da Silva

A alusão ao número 69 se dá pelo fato de esse colega ter vivido, cronologicamente, 69 anos de idade; contudo, ao perscrutar minuciosamente sua vida, tenho absoluta certeza de que ele viveu, verdadeiramente, 690 anos. E foram 690 anos sem se preocupar consigo mesmo, mas tendo o cuidado de levar a vida com prazer — às vezes, irresponsavelmente —, sem jamais ter tido a intenção de ferir alguém.

Muitas vezes era difícil dicotomizar se ele tinha mais prazer na farra ou no trabalho como médico, para o qual sofria uma transmutação que camuflava por completo o boêmio que cultivava. Entre noites de intensa boemia, havia nele um fato que jamais perdia: o grande amor pela Medicina. Médico por vocação, vivia com a leveza dos que sabiam saborear a vida, mas com a tenacidade dos que conhecem a seriedade do labor que escolheram.

Jamais se vangloriou de algo que tenha feito — mesmo porque nunca se preocupou com a opinião alheia. O que lhe valia era a sua consciência.

Poucos colegas, inclusive de nossa turma de 1982, sabem que Alonso foi o protagonista da descoberta da primeira lesão radiológica ao tempo do acidente com o Césio-137. Nenhum dos colegas havia percebido que aquelas lesões eram fruto da irradiação do Césio-137 e, ele, com seu olhar atento, curioso e muito sagaz, afirmou que não eram lesões infecciosas, e sim radiológicas. Também foi o protagonista na criação do CIATOX, o nosso centro de toxicologia, o qual criou nos moldes do que já havia em São Paulo, depois de ter estado com o inesquecível dr. Anthony Wong — o grande precursor. Por fim, se dedicou sobremaneira à terapia intensiva, com atuação diligente e competente.

Alonso Monteiro da Silva era essencialmente boêmio. Amigo fiel de seus amigos. Inimigos? Não os tinha. Homem de conversas infindáveis, das palavras hilárias, do ecletismo musical (sempre com muito bom gosto), do riso sempre estampado na face e das histórias contadas à meia-luz.

Todavia, quando vestia o jaleco branco, seus olhos adquiriam outro brilho, pois ali o boêmio providenciava um interregno em sua vida para assumir o profissionalismo que lhe tomava de assalto e o transformava no profissional humanista, comprometido com o doente e sempre presente quando requisitado. A Medicina era o seu bem maior — a qual exercia com alma, desvelo, respeito e paixão. Tinha plena noção de que não era somente a arte de curar, mas de acolher com afeto. Sabia que essa união do saber com o afeto, e do conhecimento com a empatia, o guiavam para a arte da Medicina.

Em um momento específico, um nosso colega e amigo me confidenciou: se eu precisar ir para uma UTI, quero o Alonso do meu lado — mesmo que seja com uma latinha de cerveja em mãos. Fato que jamais aconteceria, pois ele sabia muito bem respeitar a liturgia da profissão.

Alonso nos ensinou, sem pestanejar — e muito menos sem tentar catequizar —, que é possível ser intenso e até mundano sem perder a integridade. Que a boemia pode caminhar pari passu com a ética, a depender do caráter de cada um.

Nesses últimos 4 ou 5 anos, Alonso se desposou de Ana Rita e com ela foi morar. Ele se sabia doente e, a mim e a outros mais próximos, havia confidenciado das agruras orgânicas pelas quais estava passando — sem jamais ter se vitimizado. Muito pelo contrário, sempre esteve presente às nossas reuniões, que também sempre eram fartamente bem regadas. Com Ana Rita, descobriu a plenitude, o amadurecimento e a adaptação a uma vida nunca dantes vivida. Teve a oportunidade de se tornar um jardineiro por prazer, cuidando do jardim de sua casa com o mesmo esmero que lhe impingiu à sua vida médica.

Infelizmente, ele nos deixou — e deixou um vazio que parece não ser possível preenchê-lo. Findo esta pífia homenagem com os olhos rasos d’água, tal é a saudade que nutro por ele.

Vá em paz, Alonso, e que o nosso Deus o receba!