Aclamado em festivais de cinema, suspense perturbador e incômodo acaba de chegar na Netflix Divulgação / Seashore Image Production

Aclamado em festivais de cinema, suspense perturbador e incômodo acaba de chegar na Netflix

Nem a melhor escola da face da Terra são capazes de reparar a personalidade monstruosa de alguém. O que escolas podem (e devem) é identificar falhas pontuais daqueles que instruem e, ou com jeito ou com mais rigor, persuadi-los a tomar outro caminho, rever suas posições, até para seu próprio bem. O trio bestial que protagoniza “Nossos Segredos” passou incólume por professores carrascos e um diretor tirano, e, claro, sempre há de haver quem diga que esse foi o mal. A despeito da maneira absolutamente incomparável como orientais encaram assuntos que tocam à civilidade e ao verdadeiro progresso, o que arrasta um povo à revolução contínua, o filme do taiwanês Kai Ko fomenta discussões incômodas, porém urgentes. Ko, maciçamente conhecido diante das câmeras, faz um ótimo trabalho de estreia na direção ao juntar suspense e terror e ainda tira desse amálgama à primeira vista indigesto conclusões estarrecedoras sobre coragem e ignomínia, altruísmo e desonra, e em que medida esses virtudes e esses vícios compõem a natureza humana, iluminações que decerto conferiram ao longa o status de obra-prima no Udine Far East Film Festival, na Itália, um dos mais importantes eventos de divulgação do cinema asiático na Europa, com destaque para os filmes do leste da Ásia.

Qual a escala de indivíduos benevolentes e cruéis na sociedade e de que forma exatamente manifestam seu poder? Na sequência de abertura, garotos devoram frutos do mar como feras, e já na largada o roteiro de Giddens Ko usa de todos os artifícios de que consegue a fim de escandalizar quem assiste, como a cena em que a lagosta que será servida é esventrada logo após fora do aquário. O bicho expele uma secreção grossa enquanto agoniza, e a ação corta para uma rua deserta, onde alguém faz sexo dentro de um carro. A turma de glutões que rompe a história agora está no terraço do prédio diante de cuja porta o automóvel está parado. A tensão se dilui graças ao neon vermelho de uma placa no frontispício, mérito da fotografia de Chen Ta-pu, mas recrudesce no momento em que eles gritam até um dos ocupantes botar a cabeça para fora da janela, e então jogam uma garrafa na sua direção. Chang, Han e Wang celebram em grande estilo a formatura do ensino médio, e quando o índice alcoólico já é convidativo o bastante, Chang, o personagem de Berant Zhu, sugere que cada um traga à luz um episódio obscuro — e também repulsivo — já vivenciado por eles. O seu volta ao estupro da filha do diretor, uma menina cujas limitações intelectuais atribui à união consanguínea com uma parente; Han, por seu turno, lembra o dia em que resolveu abater a pedradas o mendigo que passava os dias junto à ponte, acrescentando que talvez nem tenha se desviado tanto assim, uma vez que ninguém jamais daria pela sua falta. Quando chega a hora de Wang, ele só consegue mencionar o fato de ter descoberto a infidelidade conjugal do pai e ter se omitido. Claro que os outros dois não admitem, e pior, supõem que este possa ser um plano para chantageá-los. O duelo moral entre os tipos suspeitos encarnados por Edison Song e Kent Tsai é sem dúvida um dos grandes momentos da narrativa, antes que o enredo derive para um último ato esse sim assumidamente violento depois que Chang e Han determinam como prenda para o fauno mais brando daquela trindade diabólica arremessar no gângster interpretado por McFly Wu a lata onde misturam a um resto de tinta o resultado de uma noite de bebedeira.

Toda a quadrilha sai em disparada até alcançá-los, seguindo-se o espancamento de Wang e a condução dos três ao antro gerido pelo senhor Hsing, ele mesmo um ex-delinquente juvenil que conquistou seu lugar a duras penas e aprendeu a respeitar o espaço alheio derramando o próprio sangue. Há beleza nessa sucessão de barbárie acintosamente gráfica, obra do design de produção de Sunny Wu Jo-yun e à montagem de Huey Lee e Meng-Ju Shieh, quando o antagonista de Leon Dai ministra aos garotos a lição que não se pode ter numa sala de aula, ao fim do dilema ético que, uma vez mais, põe a nu a frouxidão moral de Chang. Feito a lagosta do início do filme, ele também serve de repasto para os bandidos de Hsing; metáfora mais que adequada às pretensões estéticas de “Nossos Segredos”.


Filme: Nossos Segredos
Direção: Kai Ko
Ano: 2023
Gêneros: Mistério
Nota: 8/10