Suspense psicológico na Netflix vai te desconcertar por 90 minutos Divulgação / Netflix

Suspense psicológico na Netflix vai te desconcertar por 90 minutos

Pode até não parecer, mas Kike Maíllo, o diretor de “Inimiga Perfeita” pertence à nobre categoria de realizadores do cinema de que fez parte Alfred Hitchcock (1899-1980). Passadas mais de quatro décadas de sua morte, o trono de Hitchcock continua da mesma forma que ele o deixou — e tudo indica que seguirá assim por muito tempo, quiçá pela eternidade afora. Por óbvio, muita gente tentou se igualar ao Mestre do Suspense (muitos até chegaram bem perto), mas o que se verifica ao arriscar-se um inventário do que surgiu depois em comparação ao que o britânico produziu é que só mesmo ele tem o timing exato quanto a deixar que uma narrativa caracterizada pelo apenas sugerido incorpore a perversidade do que se aprecia em cena e transforme-se ela própria num instrumento de tortura para o público, uma pletora de situações de que se pode esperar tudo, quando o mais razoável e natural seria ouvir o que a história está a dizer e dar-lhe um fecho nessa direção.

Maíllo revela-se um observador fiel dos preceitos hitchcockianos ao achar em seu trabalho a consonância entre o que é dito e o campo da ação, sem prejuízo do muito do que resta aprisionado em entrelinhas que deixam-se ler  não quando a audiência julga oportuno, mas a seu próprio tempo. O espanhol tem ideia do desastre que pode ser esticar a corda além do que ela aguenta, tanto que em muitas passagens é nítido seu esforço quanto a permitir que o longa vá para onde quer, feito uma criança endiabrada, e resolva-se por si só.

O resultado é uma trama desafetadamente misteriosa, de cujos desdobramentos se espera o elementar e o nem tão elementar assim, em que resta mais e mais notório o cuidado de não sobrecarregar o que se vê de imagens excessivas, tampouco de detalhes cuja verbalização é o único meio de fato proveitoso para o entendimento do que se deseja comunicar. Neste ponto, Maíllo pode-se ter como um autêntico epígono de Hitchcock, dotado de todas as ferramentas sem as quais não se consegue levar boas histórias a termo.

Aqui, o elemento da fantasia é uma constante. Depois de um prólogo um tanto arrastado, o arquiteto Jeremiasz Angust vivido por Tomasz Kot quer voltar a casa, mas um engarrafamento ameaça detê-lo em Paris, onde ministrara uma conferência. A fotografia de Rita Noriega destaca a lugubridade do que se vai ver no trancurso de 89 minutos, valendo-se das sequências iniciais para situar a plateia nesse cenário de escassa harmonia, que logo degenera para a atmosfera de paranoia e caos que o diretor busca.

Do meio de todo aquele cinza, surge a figura de Texel Textor, encarnação do farelório de que se falava acima. Num óbvio jogo metalinguístico, o roteiro de Maíllo, Cristina Clemente e Fernando Navarro se utiliza do nome da personagem, brilhantemente desenvolvida por Athena Strates, para fazer menção a essas conversas sem nexo e sem futuro, inofensivas ao primeiro olhar, mas que tem o condão de perder uma pessoa, como se vai passar com Angust. Encharcada por uma chuva diluviana, Textor pede uma carona no táxi ocupado pelo personagem de Kot, defendendo que está atrasada e não arruma condução. Visivelmente constrangido ao mesmo tempo em que pondera, avaliando o desespero da mulher em situação parecida a sua, Angust aquiesce, dando início a seu próprio martírio.

Emendando um assunto no outro, como se o submetesse a uma espécie de exame, Textor mostra-se um algoz inclemente a vergastá-lo com a língua mais nociva que um chicote, até que vem à superfície o grande mistério que os une, assim como a Isabel, a esposa de Angust, interpretada por Marta Nieto, num jogo muito bem urdido de certeza e hesitação. A única vontade de Maíllo desde sempre.


Filme: Inimiga Perfeita
Direção: Kike Maíllo
Ano: 2020
Gênero: Suspense
Nota: 8/10