O filme genial que deu para Anthony Hopkins o Oscar por atuação mais brilhante de sua carreira Divulgação / Film4 / Allstar

O filme genial que deu para Anthony Hopkins o Oscar por atuação mais brilhante de sua carreira

O drama que aflige o protagonista de “Meu Pai” torna-se real com uma incidência assombrosa em lares de todos os feitios, não obstante o modo como se enxerga o grave problema — que do doente logo chega a qualquer pessoa com quem tenha o laço mais vaporoso — é que faz com que a solução pareça exequível ou mude-se definitivamente para o plano da quimera. Florian Zeller já o havia apresentado nos palcos do Théâtre Hébertot, em Paris, com Robert Hirsch (1925-2017) e Isabelle Gélinas. O espetáculo, ganhador do Prêmio Molière de Melhor Peça de 2014, dava sinais de que iria longe já na estreia, num hoje vago setembro de 2012, por reunir num mesmo espaço diminuto dois atores em plena capacidade de seu ofício e um texto complexo, rico, cheio de desdobramentos, além da impecável produção, que captava cada detalhe do que era falado e dispunha em cena uma pletora dos elementos que transportavam o espectador para a mente em ruínas do personagem central, que por sua vez ia do concreto à realidade paralela que inventara assim como o sonhador acorda num espasmo no meio da noite, urgindo por tomar a fresca, e volta a embalar instantes depois, reencontrando tudo como deixara.

Muito da excelência do que é visto deve-se ao trabalho de Peter Francis e sua delicada engenharia de ir jogando pelo apartamento do velho senil em torno do qual “Meu Pai” gira objetos que mudam de cor e de formato diante de nossos olhos, e, como efeito, perceber a maldição de Anthony é um exercício de humanidade. Para que a mágica funcione no cinema, a tecnologia, como é de sua gênese indiscutível, entra em peso. O domínio da edição de Yorgos Lamprinos é fundamental para que se alcance as determinações do roteiro de Zeller e Christopher Hampton, quais sejam, manter o público atento às mínimas variações de humor e temperamento de

Anthony, sabendo que há uma justificativa, um lastro de razoabilidade, para que tal ocorra. Lamprinos, vencedor do prêmio de Melhor Edição da Los Angeles Film Critics Association, entidade que reúne um bom número do sem fim de críticos de cinema angelinos, é, como Francis, um dos vários pequenos mecanismos invisíveis que fazem dessa uma história persuasiva, mas também sutil; refinada, e ao mesmo tempo, corriqueira demais. Não é pouco.

Se “Meu Pai” tem um segredo é precisamente a banalidade tolstoiana de que as histórias de famílias infelizes se revestem. A trilha sonora de Ludovico Einaudi dá a impressão de que Anne é uma super-heroína, mas a personagem de Olivia Colman parece estar desnorteada no labirinto de cômodos atulhados de móveis do palacete suspenso em que Anthony, seu pai, vive. A interpretação de Colman, minimalista, serve de honroso exórdio à onipresença de Anthony Hopkins, com cujo primeiro nome Zeller e Hampton batizaram sua nova criação, e Hopkins de fato apropria-se do personagem sem nenhuma cerimônia, descobrindo cada minudência oculta de Anthony e dando-lhe o traçado que sua sensibilidade julga oportuno. Esse casamento perfeito, que acaba valendo ao intérprete o Oscar de Melhor Ator e ao diretor-roteirista e seu adjunto a estatueta para Melhor Roteiro Adaptado, deixa que o protagonista brinque com as múltiplas personas de Anthony, sem muito cálculo sobre se fere essa ou aquela suscetibilidade. À medida, entretanto, que conflitos reais se fazem sentir e passam a ditar os rumos da narrativa até o final inaudito e comovente, vai-se tendo uma noção cristalina de que Zeller tem um propósito com “Meu Pai”, e que nada ali é muito divertido. O exemplo cabal a ilustrar o argumento é, sem dúvida, a subtrama do relógio, logo no primeiro ato, mediante a qual o diretor encadeia muitas das circunstâncias vexatórias e de surdo desespero que marcam o ritmo do longa. Na última sequência, Zeller lança mão dessa metáfora com toda a poesia, de um jeito esteticamente avassalador, explicando a fixação de Anthony por aquele objeto. Na solidão em que se arraigara e no isolamento perpétuo contra os quais Anne não podia mais lutar, aquele homem ultrapassado por si mesmo se dá conta de que também não domina o tempo. E que seu tempo expirou sem que ele visse.


Filme: Meu Pai
Direção: Florian Zeller
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 10/10