Com a teoria da relatividade, publicada em 1905, um dos trabalhos mais célebres de Albert Einstein (1879-1955), o alemão naturalizado americano faz menção à natureza elástica do tempo, já que as leis da física são iguais para todo referencial inercial, isto é, um ponto do qual se deseje partir, a fim de se atingir dado lugar no universo. Em “Durante a Tormenta”, o diretor espanhol Oriol Paulo por seu turno doma a aridez dos mandamentos da ciência de Einstein e materializa uma ficção científica como poucas já apresentadas pelo cinema. Aqui, os elementos a partir dos quais toda a história toma corpo surgem com uma tempestade, que ocorre simultaneamente em 1989 e 25 anos depois, em 2014. O ano de 1989 marca a queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro, data emblemática do século 20, escolhida pelo britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) para simbolizar seu efetivo término. Há pontos de contato interessantes nas trajetórias do físico e do historiador, vultos da humanidade e ambos judeus que tiveram de emigrar para os Estados Unidos escapando do furor assassino de Adolf Hitler (1889-1945) no mesmo ano, 1933, quando o austríaco é nomeado chanceler da República de Weimar (1919-1933) — o que, não por acaso, se configura no seu encerramento e na ascensão do Terceiro Reich (1933-1945), que felizmente não durou mil anos como desejava o facínora, “apenas” doze; entretanto, as coincidências talvez parem por aí. Hobsbawm, membro do Partido Comunista do Reino Unido, e um dos intelectuais que com mais brilhantismo conseguiu destrinchar o pensamento marxista, refere-se à queda do Muro como o princípio do fim, ou seja, a utopia da igualdade entre os homens cedia lugar à selvageria do capitalismo e da consequente economia de mercado, com tudo o que isso implicasse em avanços e retrocessos, estes mais que aqueles para Hobsbawm.
A queda do Muro de Berlim é, decerto, uma das imagens de maior apelo midiático ainda hoje. Em seu roteiro, assinado com Laura Sendim, o diretor lança mão desse registro e aproveita para situar o espectador em “Durante a Tormenta”. Nico, um garoto na segunda infância, dedilha acordes na guitarra, tudo gravado por uma filmadora VHS, enquanto a tempestade furiosa do título risca o céu de relâmpagos. Brados que supõem virem de uma casa próxima o fazem interromper o exercício; ele vai até lá e vê um homem que acabara de matar a companheira a golpes de faca. Aterrorizado, Nico foge aturdido e termina mortalmente arrebatado por um caminhão. Um quarto de século mais tarde, o tempo novamente instável, Vera, David e a filha deles, a pequena Gloria, vão morar na casa que fora de Nico. A enfermeira vivida por Adriana Ugarte acha no armário a filmadora e um monitor de televisão antigo, que pertenciam ao defunto. Vera consegue estabelecer contato com Nico, de Julio Bohigas Couto, mesmo separados no tempo por duas décadas e meia, e adverte o garoto para o que lhe aconteceu ao se dirigir à cena do crime. Nico, desta vez, sobrevive. Por causa dessa resolução, à primeira vista ética, humana, Vera passa a sofrer as consequências do chamado efeito borboleta, em que uma ação desencadeia fenômenos imprevisíveis e que não se relacionam necessariamente ao fato que os gerou. Agora não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David, o marido interpretado por Álvaro Morte, está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. O caos particular da protagonista a lança para um tempo que não é o seu, do qual pode nunca mais sair, como um dos personagens de “Meia-Noite em Paris” (2011), já nos estertores do filme de Woody Allen. Para ter sua vida de volta, Vera precisa recuperar os aparelhos usados por Nico em 1989 e reencontrá-lo como homem feito.
A viagem no tempo é, com efeito, apenas figura de linguagem. O que Oriol Paulo pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma pletora de eventos inusitados ao longo do enredo. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. Ao longo do filme, desdobram-se várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. O diretor propõe uma espécie de jogo com quem assiste, torcendo a história a seu talante nessa metáfora sobre as incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, Oriol Paulo confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Um Contratempo” (2016), e desenvolve uma questão estimulante: o homem tem de se submeter ao tempo, mas ao fazê-lo raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança. Se tudo correr bem, vence-o e tira dele a única coisa que pode: sabedoria. Há os que conseguem, os que passam a vida tentando e, a maior parte, os que supõem que o tempo não é capaz de ensinar nada. Para esses, viver é tempo perdido.
Filme: Durante a Tormenta
Direção: Oriol Paulo
Ano: 2018
Gênero: Suspense/Drama/Ficção Científica
Nota: 9/10