O filme da Netflix que tem 100% de avaliações positivas, mas você não assistiu Aidan Monaghan / Netflix

O filme da Netflix que tem 100% de avaliações positivas, mas você não assistiu

Valores caros à civilização, sem os quais todos já teríamos soçobrado em meio a conflitos armados cada vez mais frequentes, relações íntimas marcadas pelo abuso e pela psicopatia, a justa descrença quanto a alguma evolução, precisam ser permanentemente resgatados para que não nos esqueçamos da nossa humana condição, desventurada em essência, porém cheia de fantasiosas possibilidades. Histórias como a mostrada em “O Que Ficou Para Trás” deixam esse argumento um pouco menos genérico, um pouco menos nebuloso, e muito mais objetivo, ainda que Remi Weekes não se furte a somar ao corpo de seu filme um mistério que vai tomando ares de uma inescapável sensação de gradual desconforto, de repulsa frente ao que o diretor reserva para mostrar no instante que lhe parece certeiro. Em seu primeiro trabalho no comando da câmera, Weekes não perde a chance de dar novo fôlego a um gênero que intriga o público desde sempre, menos pelas situações em que medo e euforia se fundem que pela crítica sagaz levantada contra elementos da vida que vão passando por normais, a despeito do incômodo que deveriam causar.

O bom filme de terror sempre passa por cima da mera vontade de assustar, e em “O Que Ficou Para Trás” Weekes vitamina as pretensões intelectuais de seu trabalho lançando mão de recursos que serviriam a qualquer gênero, mas que num terror sofisticado, pleno de sequências em que o paradoxo de sensações incomodamente prazerosas remete de pronto a ameaças reais dispostas num fundo sobrenatural, têm ainda mais peso. O horror da vida e a insana redenção que o pavor do ilusório encerra integram o processo catártico de que o diretor se socorre para falar do existir e de tudo o que implica, em especial seus dilemas, suas questões mais filosoficamente cruciais e, por óbvio, sua degenerescência. O roteiro, de Weekes, Felicity Evans e Toby Venables não abdica do susto pelo susto, o jumpscare, e transita pelos subgêneros em que elementos mais apelativos em tramas dessa natureza — casa mal-assombrada, zumbi, terror psicológico, gore — abrem alas para construções estéticas mais sofisticadas, a exemplo das presentes nas narrativas lovecraftianas. H. P. Lovecraft (1890-1937), escritor americano que subverteu tudo o que já havia se produzido em terror ao empregar artifícios mais afeitos à ficção científica, é propositalmente reverenciado em “O Que Ficou Para Trás”, mas o filme tem ainda laivos de outros vultos da literatura. O romancista moçambicano Mia Couto, por exemplo, célebre no mundo todo graças à sua narrativa assumidamente inspirada pelo realismo mágico do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), de que se, por seu turno, depreende-se a influência do baiano Jorge Amado (1912-2001).

Entende-se muito da África lendo-se Mia Couto, que se vale do real maravilhoso de García Márquez para dar vida a criaturas que se assenhoreavam de seus personagens no mundo dos sonhos. A pena de Couto, uma das que mais louvam e relatam com mais preciosismo técnico a experiência onírica, funde-se à escolha consciente — e mesmo militante — de retratar os tipos de sua aldeia, numa prosa caudalosa sem ser prolixa, direta mas não árida. O novelista, vencedor do Prêmio Neustadt, o Nobel americano, em 2014, retrata em sua literatura a história africana, as agruras e os costumes de seu povo. Essa África, mais um dos tantos territórios sobre os quais o Império Britânico (1583-1997) estendeu seus domínios por mais de quatro séculos, padece ainda hoje das chagas decorrentes da exploração dos ingleses, e, naturalmente, as feridas largas e profundas da colonização forçada não saram assim, da mão para a boca. O apartheid, a segregação racial como política de Estado, vigente na África do Sul a partir de 1948, foi declarado oficialmente extinto em 1994, mas a discriminação, a falta de perspectivas, a miséria não respeitam decretos. Na porção setentrional do continente, a proximidade da indigência e da fome — coroadas pela instabilidade política no Sudão do Sul, emancipado do Sudão em 9 de julho de 2011 —, fazem Bol Majur e a mulher, Rial, os personagens de Sope Dirisu e Wunmi Mosaku, emigrarem para o Reino Unido, levando a filha, Nyagak. Tem início nesse contrafluxo a saga que ancora toda a narrativa de “O Que Ficou Para Trás”. A adaptação dos Majur ao novo ambiente e à nova vida — agora sem Nyagak, que morreu durante a viagem — é penosa, mais para Rial que para o marido. O tormento dos personagens, padecendo de uma modalidade muito específica de sofrimento, hostilizados por uma vizinhança que os despreza (pretos como eles, inclusive), aprisionados num apartamento que à primeira vista parecia um sonho, mas logo se revela a encarnação de seus muitos problemas, vai ganhando corpo à medida que notam quão encalacrados se acham. A infelicidade contida no que Weekes começa a desvelar ali funciona como a isca que faltava para que, finalmente, capture a plateia.

Partindo da intenção de arrancar o espectador do raciocínio já estabelecido mediante o uso de metáforas como a da casa que não tolera seus novos moradores, o filme abre seu leque para outras discussões, como a degeneração da política de sua terra natal — o motivo primeiro que os lança no redemoinho de ter de se moldar à nova pátria que os acolhe (se de bom grado ou não, é matéria para outro artigo) —, da discriminação racial que redunda desse êxodo, do estigma de serem diferentes (condição de que não podem se livrar, uma vez que sua pele lhes recorda sempre), e dessa forma se habituam a seu estado de excluídos, de párias. Em “Nós” (2019), Jordan Peele também aborda o preconceito tomando por fundamento a história de uma família negra (e rica) às voltas com suas crises de consciência e complexos de inferioridade — que não admitem nem para si mesmos, com as luzes apagadas —, nutridos pela ojeriza internalizada que têm contra si mesmos por poderem viver sem maiores apuros de dinheiro. O caso dos Majur é diametralmente oposto ao dos protagonistas do filme de Peele: anseiam por uma chance, por sucesso, essa é a seiva que os mantêm vivos. O vigor com que perseguem esse sonho, sequioso de realização ainda que sem nenhuma possibilidade para tanto, é o grande fantasma que se apossa da vida dos dois, já assombrados o bastante pelas memórias da pequena Nyagak, um vínculo com o passado do qual nunca conseguirão se desfazer, por mais ricos que algum dia, num futuro muito incerto, possam vir a se tornar.

O exercício de digressão filosófica proposto por Remi Weekes em “O Que Ficou Para Trás”, emoldurado por filigranas técnicas que realçam sua criatividade como realizador de cinema, suscitam na audiência um frêmito esquisito, misto de piedade e revolta, tomados que somos pela energia destrutiva da trama. Uns mais que outros, somos todos culpados pelo retrocesso que nos pune por igual. O discurso não basta.


Filme: O Que Ficou Para Trás
Direção: Remi Weekes
Ano: 2020
Gênero: Terror/Thriller
Nota: 9/10