Inteligente, sarcástico e crítico, sua última chance de assistir na Netflix a um dos melhores filmes espanhóis da década

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O que acontece entre quatro paredes não deveria inspirar a curiosidade tola — e muitas vezes também mórbida — de quem quer que seja. Transferir o que acontece longe do escrutínio público para o centro das atenções só pode ser uma boa ideia quando a figura em questão vem a alimentar pretensões para muito além da sua bolha de intimidade, como presidenciáveis implicados num grande escândalo, político ou moral — e isso só acontece com a mediação de um jornalista encarniçado num possível furo ou com a ajuda nada consciente de uma esposa traída. Em se lidando com os sentimentos mais impublicáveis de uma pessoa, tirar do limbo fatos e declarações que não dizem respeito a mais ninguém senão aos indivíduos, adultos e capazes, envolvidos nesses episódios só o que faz é trazer cizânia e quiçá tragédia. É absolutamente natural e mesmo defensável sob a perspectiva humanitária querer tomar algum partido na vida alheia, porém é da mesma forma prudente manter sob controle os ímpetos quanto a reger o que não lhe cabe. Até porque todos, do varredor de rua ao rei, alcançando ainda as classes mais plurais de grã-finos de toda ordem, temos detalhes dos quais não nos orgulhamos em nossa biografia privada.

Um grupo de sete amigos flagra-se vítima de apuros ao ignorar pressuposto tão básico para a convivência saudável em “Perfectos Desconocidos” (2017), em que o diretor Álex de la Iglesia lança mão de um enredo inteligente, embora nada original, com a intenção de averiguar o que existe para o mais fundo da superfície do homem. Seus personagens estão dispostos em torno de uma mesa desfrutando da companhia uns dos outros enquanto aguardam que venha o prato principal. Dessa ordem cênica clássica, em que os atores permanecem muito próximos ao longo de boa parte do filme, De la Iglesia extrai boas sequências, alternando os enquadramentos de um tipo para o seguinte, ao passo que consegue captar também as reações de todo o elenco. Desenrolam-se fragmentos perturbadores, cuja importância só vai ter a justa medida com o desfecho, que apela a uma solução tipicamente deus ex machina. Movimentos quase imperceptíveis de alguns dos comensais desse jantar diabólico determinam como se vai deslindar a narrativa central, o que, claro, só se comprova mesmo na reta final da história.

Numa noite de lua de sangue, uma condição astronômica rara, Eva, interpretada por Belen Rueda, e Alfonso, o marido, personagem de Eduard Fernandez, recebem cinco amigos para uma pequena confraternização. Pouco antes do enredo deslanchar de fato, o roteiro de De la Iglesia e Jorge Guerricaechevarría insere a presença de Sofía, a filha de dezessete anos, de Beatriz Olivares, que sai para se encontrar com amigos naquelas festinhas em que muita coisa acontece além de conversas levianas e simples flertes. Numa das cenas anteriores, cujo simbolismo encerra muito da hipocrisia que reina naquela casa — evidência de que o espectador só se certifica na conclusão, repita-se, argumento de argúcia inegável do diretor —, Eva questiona o porquê de Sofía guardar preservativos, depois de ter revirado a bolsa da filha, gesto invasivo e injustificável. Pelo visto, a psicoterapeuta não confia no próprio taco; Rueda compõe com Fernandez a personificação máxima do casal classe média alta dito descolado, mas que se dói quando sua pretensa harmonia familiar e a felicidade conjugal de fancaria começam a fazer água. Alfonso, cirurgião plástico de renome, não suporta que a mulher lhe tenha segredos, e é precisamente ela quem propõe o jogo que dá origem a todo o mal-estar a que se vai assistir, com episódios de infidelidade em nuanças de maior ou menor carga dramática e a homossexualidade de um dos convidados exposta a sangue frio, mas conduzida com leveza, graças ao ótimo desempenho de Pepón Nieto como Pepe.


Filme: Perfectos Desconocidos
Direção: Álex de la Iglesia
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10