Emocionante, visceral, furioso e desconcertante, filme na Netflix vai fazer seu coração sair pela boca Kimberley French / Columbia-TriStar

Emocionante, visceral, furioso e desconcertante, filme na Netflix vai fazer seu coração sair pela boca

Ninguém sabe como será o futuro, claro, todavia diante de cenários cada vez mais sombrios, em que o homem se mostra implacável quanto a destruir tudo quanto existe e ainda consegue matar no ovo o que poderia vir a ser o princípio de tempos menos imprecisos, há um consenso entre a comunidade científica e observadores das coisas de seu tempo, leigos, mas bastante perspicazes, quanto a esperar o pior. Estiagens que não são trégua e fustigam colheitas, encarecendo sobremaneira o preço da comida; enchentes que também  arruínam a lavoura, além de deixar um rastro de milhares de desabrigados; tiranos cujas tentações liberticidas se projetam para muito mais longe que as fronteiras de seus domínios, defendidos à custa de guerras covardes; pragas que surpreendem  a humanidade no contrapé e aniquilam milhões até que se descubram antídotos: são tão diversas as possibilidades de que tudo saia do controle irremediavelmente que a simples menção ao assunto gera um mal-estar instantâneo, com que a maioria das pessoas não sabe lidar.

Condenado à vida em condições extremas, o gênero humano resiste o quanto pode, imprensando-se em edifícios cada vez mais altos com apartamentos cada vez mais diminutos pelos quais entrega boa parte do salário, defasado graças a políticas econômicas imprudentes, de que procura sair o mínimo possível, para não ser caçado por bandidos e engrossar as estatísticas sem chance de sentir-se menos exposto, uma vez que a polícia não está interessada. Os métodos comprovadamente falhos das forças policiais entram na conta das mazelas denunciadas por “Elysium” (2013); no entanto, o filme de Neill Blomkamp é muito mais. Uma das mais bem contadas histórias sobre a incerteza que ronda a população do mundo inteiro, agravada por chagas muito próprias da pós-modernidade, o filme é uma mistura de boa parte dos elementos que tanto despertam emoções díspares e complementares entre si, como o amor e o ódio de uns pelos outros, dificultadas pela realidade inescapável de que o dinheiro é o critério que poupa alguns e perde muitos.

“Elysium” é um apanhado de sequências primorosas, em que os efeitos especiais de uma equipe de mais de cem técnicos ajudam Blomkamp a imprimir todo o realismo que tramas assim demandam. As escolhas que o diretor-roteirista faz no que diz respeito à narrativa propriamente, bem como, naturalmente, ao apuro estético tornam o enredo, mais que verossímil, completamente orgânico. Em 2154, ninguém em sã consciência viveria na Terra, e essa é uma alternativa, mas não para todos. O lugar a que o título do longa se refere é uma colônia extraplanetária vedada a assalariados, trabalhadores sem qualificação que lhes permita arrumar boa colocação, ou qualquer outra categoria de desvalido social. Entre eles está Max, o ex-ladrão de carros vivido com entrega comovente por Matt Damon. Hoje regenerado, com um pânico da cadeia que apenas os verdadeiramente arrependidos desenvolvem, Max conseguia avistar Elysium do bairro humilde onde cresceu, numa Los Angeles que hoje espelha na aparência a degradação moral com que sempre convivera bem. Criado num orfanato, Blomkamp prepara seu público para o que virá a seguir mediante flashbacks em que o pequeno Max conversa com a freira a quem se afeiçoou sobre a passagem do tempo, lances que se prestam a compor o eu-lírico do protagonista.

Como lhe diz o chefe, entre paternal e sarcástico, Max tem sorte de ter conseguido emprego honesto numa fábrica de exoesqueletos, usados como uma extensão do corpo pelos humanos do século 22, e, justiça se lhe faça, ele valoriza a oportunidade, tanto que, quando uma máquina apresenta um bug, o chefe o insta a se embrenhar pelos intestinos da engenhoca e reparar a avaria. Pressentindo o revés que efetivamente acontece, o anti-herói de Damon sofre uma descarga de radiação que pode matá-lo em cinco dias, a não ser que consiga uma passagem para o novo mundo, onde tratamentos de moléstias como essas são corriqueiras as chances de êxito. 

Esse é o gatilho para o segundo ato, em que entram em cena Frey, a ex-amiga de infância com histórico semelhante ao do personagem central, mas que conseguiu superar o abandono e se tornar enfermeira e Spider, espécie de coiote, intermediário que transporta terráqueos para Elysium clandestinamente. Os dois brasileiros do elenco estão em campos opostos. Enquanto Alice Braga dá vida a uma mocinha cheia de conflitos — conformar-se com a morte lenta e dolorosa da filha pequena, sucumbindo a uma leucemia terminal, é, decerto, o maior, mas não o único —, Wagner Moura parece muito confortável no papel do antagonista clássico, mau e sem remorso. 

Da mesma forma em que “Distrito 9” (2009), Blomkamp tratava do apartheid como uma hecatombe social de proporções que extravasavam o contexto de sua África do Sul natal, aqui o diretor entende a miséria como a tragédia que de fato é, dando eco ainda a produções icônicas da história do cinema, como “Metropolis” (1927), de Fritz Lang (1890-1976), ao abordar a coisificação do homem e o lumpemproletariado. Vieram ainda “Chappie” (2015) e “Rakka” (2017), também marcados por críticas mordazes (e pertinentes) ao capitalismo, sua solidão e seus crimes.


Filme: Elysium
Direção: Neill Blomkamp
Ano: 2013
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Drama/Ação
Nota: 8/10