A última entrevista de Clarice Lispector

A última entrevista de Clarice Lispector

Uma rara entrevista de Clarice Lispector, concedida em 1977, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura. Depois de gravada, Clarice pediu que a entrevista só fosse divulgada após sua morte. Foi ao ar dez meses depois. Clarice morreu em dezembro de 1977, aos 57 anos

De minha sala até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A Paixão Segundo G.H”… Ou quem sabe sobre “A Maçã no Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”… Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la.

São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha. Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do vaivém dos cenários desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que falam alto, no meio de um grande alvoroço.

Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a semelhante. Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli, entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados. Clarice me olha. O olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me pede para que a tranquilize.

“OK, Júlio, tudo pronto”, a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço. Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás. Peço silêncio e depois de uns dez segundos ecoa um “gravando”.

Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos. Estou completamente desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que dizer. Clarice me olha curiosa, mas vigilante, defendida. Sou o senhor do castelo e — prepotente — guardo comigo a chave desta prisão. Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.

A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista. A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Clarice está nua, não há perdão, Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar, mas logo escapa, e volta, e me pega, e me sugere o longe, o não dizível, depois se cala. E quando nada mais espero, ela volta a falar. Faço uma antientrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.

Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: “Chega!”. Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado “repórter” e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.


Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector?

Você chegou a conhecer o Sérgio Milliet pessoalmente?

Clarice, seu pai fazia o que profissionalmente?

Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa?

Você chegou a ler as coisas que sua mãe escreveu?

Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou a escrever e quando?

Quando a jovem, praticamente adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele campo de criação humana que mais a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público?

Você poderia nos dar uma ideia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?

Desse período você se lembra do nome de alguma produção?

Você publicava onde?

Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora?

Por quê?

A sua produção ocorre com frequência ou você tem períodos?

E esses hiatos são longos?

Como você explica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil?

É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?

O adulto é sempre solitário?

E a criança?

A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?

Normalmente o contato do jovem estudante com você revela que tipo de preocupação?

O que significa “estar na sua”?

Nós ouvimos com frequência que as novas gerações pouco leem no Brasil. Você confirma isso?

De seus trabalhos qual aquele que você acredita que mais atinja o público jovem?

E isso acontece em relação a outros trabalhos seus?

Antes de nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo trabalho agora, uma novela…

Que novela é essa, Clarice?

O cenário dessa novela é…

Onde você foi buscar a inspiração, dentro de si mesma?

Qual o nome da heroína da novela?

E o nome da novela, você poderia revelar?

Rilke, em seu livro “Cartas a um Jovem Poeta”, respondendo a uma das missivas, pergunta a um jovem que pretendia se tornar escritor: se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a você.

Esse período?

Clarice, mas como é que você escreve? Existe algum horário específico?

Você acorda a que horas?

Você se considera uma escritora popular?

Por qual razão?

E como você vê esta observação “hermética”?

Que conto?

Entre seus diversos trabalhos existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?

Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu?

Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas?

No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje?

Você tem mantido contato como outros escritores?

Quais aqueles que você acredita serem os mais significativos?

Você discute muito com a Clarice Lispector escritora?

E convivem em paz?

Normalmente, que tipo de problema a Clarice Lispector escritora traz a você?

Por qual razão?

E você acredita que as pessoas olham para você através desse rótulo?

Você acredita que uma pessoa vá a uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector?

Será que as coisas simples hoje são recebidas de maneira complicada?

Na sua formação como escritora quais aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram?

Isso ainda acontece de você produzir alguma coisa e rasgar?

É produto de reflexão ou de uma emoção?

De quem?

Por que, Clarice?

Do quê?

Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

 

Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.