Pré-selecionado ao Oscar 2022, filme da Netflix traz história de amor que se atreve a encontrar esperança além da guerra

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As dificuldades que o povo afegão vem enfrentando remontam a muito antes da guerra entre os Estados Unidos e o Talibã, iniciada há vinte anos, em 7 de outubro de 2001, e oficialmente encerrada em 30 de agosto de 2021. O Afeganistão já passava por longos períodos de falta de alimentos e remédios desde os enfrentamentos com a União Soviética, em 1979, que invadiu o país a fim de depor o governo de Hafizullah Amin (1929-1979), democraticamente eleito, motivada pelo alinhamento e a consequente possível aproximação do país com os americanos, por mais irônico que pareça. A partir desse ponto, a história do Afeganistão dá um mergulho cada vez mais fundo no atraso, deixando um saldo de dez milhões de miseráveis e dezoito milhões de subempregados.

“Três Canções Para Benazir” (2022) não se alonga sobre as razões pelas quais o país chegou aonde chegou e como, preferindo se fixar na realidade de seus moradores, especialmente os refugiados de um abrigo da Organização das Nações Unidas (ONU) em Cabul. Para representá-los, os diretores afegãos Gulistan e Elizabeth Mirzaei — já ovacionados por “Laila at the Bridge” (2018), sobre Laila Haidari, uma mulher que consegue escapar da sina de ter de se casar ainda criança — se debruçaram sobre a vida de Shaista, recém-casado com a Benazir do título. Como Laila, o rapaz tenta dobrar o destino que o pai e os outros membros de sua tribo escolhem para ele e sonha em se alistar e integrar as frentes do Exército Nacional Afegão. Como se vê na sequência, não são somente as mulheres que têm de se conformar com as parcas esperanças que a pobreza institucional afegã reserva a seus cidadãos. Por já ser casado e com um filho a caminho, o pai e os integrantes da tribo vetam seu ingresso na corporação, um revés que degringola num fim melancólico para Shaista.

Já na estreia, o documentário de 22 minutos despertou a atenção de críticos de todo o mundo, passando a ser o favorito de muitos festivais. Sem dúvida, “Três Canções Para Benazir” é um excelente ponto de partida para quem quer entender um pouco mais sobre a condição da população afegã, abandonada à própria sorte por aqueles que deveriam protegê-la, mas usam a desculpa da defesa a qualquer custo da religião e dos costumes para massacrá-la. Os Mirzaei fizeram um grande trabalho — como atesta o interesse da Academia em aceitar sua candidatura ao Oscar de Melhor Curta Documental em 2022 —, mas resta muito a se dizer depois dos créditos finais da produção.

Shaista já estava no radar dos cineastas, sobretudo de Gulistan, desde que o encontraram no acampamento da ONU, na fila para a distribuição de comida. Entre os dois, se impunha uma coincidência triste e impositiva: Gulistan também fora um refugiado durante a invasão soviética. O diretor sentira que aquela alma vibrava no mesmo diapasão que a dele e, portanto, alguma boa história poderia sair dali. “Ele tinha esperança, tinha sonhos. Havia qualquer coisa nele que nos atraía”, relatou Gulistan. A primeira abordagem se deu em 2009 e foram necessários mais quatro anos até que as filmagens efetivamente começassem. Ao longo desse tempo, Gulistan e Elizabeth mantiveram as visitas a Shaista, vínculo que foi se estendendo e alcançou boa parte dos moradores da área. Essa confiança é fundamental num relato eminentemente biográfico como “Três Canções Para Benazir”; se no início os abrigados se mostravam refratários a qualquer tentativa de conversa, no decorrer de quatro anos os Mirzaei tinha material o bastante para dar forma cinematográfica ao que sua própria gente lhe confidenciara.

À ideia original, de registrar o romance prematuro de Shaista e Benazir, juntou-se a necessidade inexpugnável de falar da situação sociopolítica do Afeganistão, ainda que superficialmente. Pelo conflito entre o protagonista, seu clã e seus patrícios — a inconveniência quase herética de Shaista em querer ser militar, e não um trabalhador nos campos de papoula —, se tem uma ideia, pálida, do completo desconhecimento de noções básicas de qualquer organização social minimamente civilizada, como individualidade, meritocracia, vocação. É visível a debilitação espiritual de Shaista a cada golpe, até o derradeiro, quando amaldiçoa o pai que o condena à derrocada não só do espírito, mas também física. A animação do garoto dá lugar ao ressentimento e à idiotia, momento em que se parece com Benazir no que ela tem de pior. Se antes Shaista era capaz de passar por cima de sua maciça prostração existencial, certamente alimentando a ilusão de ser soldado, depois que é obrigado a abdicar definitivamente da ideia e ir colher papoulas, não consegue evitar acabar como acaba. Como se sabe, a produção de papoula, segue de vento em popa no Afeganistão, o que seria uma ótima notícia para a economia arrasada do país. Contudo, o ópio continua a ser desviado, desde a origem, para a fabricação de ópio, um dos entorpecentes mais nocivos que existem. Sob o olhar conivente do Talibã.

Como genuínos afegãos, Gulistan e Elizabeth têm esperança de que “Três Canções para Benazir” vá além do aspecto documental — malgrado o que prevaleça mesmo seja seu teor dramático — e sirva de chamariz à comunidade Internacional quanto a agonia do Afeganistão, um país que, como o Brasil, tinha tudo para decolar e se afunda em meio aos desmandos de castas que, de uma maneira ou de outra, se assenhoram do futuro de todo um povo por gerações, sem perspectiva de retorno. O Afeganistão, o Brasil e tantos países subdesenvolvidos vêm se conformando com o fado de ser, em maior ou menor medida, só um quadro empoeirado numa parede arruinada. Os Mirzaei levaram dez anos para entender isso, até 2019, quando deram seu documentário por encerrado. Tem gente que está levando mais de cinco séculos.


Filme: Três Canções para Benazir
Direção: Gulistan e Elizabeth Mirzaei
Ano: 2021
Gênero: Documentário
Nota: 9/10