O que é felicidade, cambada?

O que é felicidade, cambada?

Uma comitiva composta por uma louca, uma bicha louca, um deputado evangélico, um pastor alemão, um cão dos infernos, um padre exorcista, uma alma penada, três mulheres peladas, um palhaço deprimido e um escritor medíocre em busca de reconhecimento viajou na maionese por vários países do planeta com uma incrível missão a tiracolo: descobrir, preferencialmente, de uma vez por todas, o que fosse aquela tal felicidade?

Antes de embarcarem na barca furada, o grupo fez uma rápida checagem interior a respeito do tema. Na visão da louca (numa de suas várias visões diuturnas, aliás), felicidade era poder encontrar uma floresta no caminho com quem pudesse conversar.

A bicha louca deixou de chiliques e argumentou que felicidade era um deputado da bancada evangélica beijar na boca um deputado da bancada ruralista em plena Comissão de Direitos Humanos e Minorias no Congresso Nacional. “Um luxo, gente”.

O deputado evangélico, em tom meio profético-ameaçador, aplacou a ira homofóbica do eleitorado ao apregoar que felicidade era contar com a mira sempre certeira da pistola divina contra pragas blasfemadoras da música pop como o John Lennon e Os Mamonas Assassinas.

O pastor alemão, tamanha a sua intolerância, latiu umas palavras que ninguém entendeu, portanto, ficou fora da enquete.

O cão dos infernos, após urinar na pilastra de uma igreja, afirmou numa profecia dantesca que a felicidade era saber que Jesus estava voltando, mas que o capeta nunca saíra daqui, portanto, estava tudo dominado.

O padre exorcista apregoou ao grupo indigesto que felicidade era não ter que se casar. E riu da cara dos demais.

A alma penada fez a sua declaração valendo-se da bocarra espumante do pastor alemão que, até então, só tinha ganido, num fantástico fenômeno de incorporação. Trazendo consigo toda a amargura e desconhecimento de penar no vazio do tempo e do espaço, numa espécie de calabouço para almas banidas, a entidade expurgada sussurrou que felicidade era poder voltar a falar através da garganta de um ser vivente, ainda que fosse aquele intolerável pastor alemão.

As três mulheres peladas tiveram enorme facilidade em chegar a um consenso — porquanto poço de toda singeleza e parvoíce — e concluíram que felicidade era chacoalhar bumbuns siliconados na Marquês de Sapucaí durante o carnaval. “Que mulher não adora de ser admirada por outra mulher, ou cair na faca de um renomado cirurgião plástico?”, elas resumiram em sorrisos paralíticos.

O palhaço deprimido tentou se esquivar, preferia nada dizer, mas acabou resumindo numa só palavra o que era felicidade, na sua opinião, se é que alguém no mundo se importasse com ele: “prozac”.

Por fim, o escritor medíocre em busca de reconhecimento nada declarou, contudo, anotou num pedaço de papel para embrulhar pães que felicidade era contar com a mãe ainda viva para ler e elogiar os seus textos sagazes.

Feito o reconhecimento mútuo dos incautos, partiram. Inicialmente, aportaram no Planalto Central, detonando a vidraça do palácio e estacionando sobre o tapete presidencial. Assustada com a quebra do decoro, do protocolo e do vidro temperado fumê, a Presidente declarou em rede nacional que felicidade era manter o seu hemograma normal.

Já no Senado, interpelaram um octogenário senador nordestino, o qual proferiu um longo e entediante discurso cuja moral da estória foi a seguinte: felicidade era ser aceito como imortal pelos demais velhinhos da Academia Brasileira de Letras, pois era bem assim que ele sempre se sentira, um imortalizado no poder.

Barack Obama cantou de galo que felicidade era ter nascido norte-americano.

Aproveitando que Paul McCartney estava de volta ao Brasil para mais alguns shows, a legião impensável, que também era fã do Macca, quis ouvir a sua opinião, a qual, sem dúvida, significava muito para eles. Com toda simpatia que sempre lhe fora peculiar, Sir Paul disse que felicidade era “happiness”. Completou que adorava ficar sozinho a praticar jardinagem no seu castelo em Londres, mas que ouvir uma plateia extasiada cantando o refrão de “Hey Jude” até enjoar também não era de todo ruim.

Dentro de um presídio em São Paulo, conseguiram alguns centímetros cúbicos de espaço dentro de uma jaula justiceira contendo trinte e sete inimigos da sociedade — onde deveria haver apenas seis deles — e ouviram um líder amotinado que queimava um colchão e um baseado esbravejar que não dava pra confessar o que era a felicidade sem a presença de um advogado.

Em plena festa de comemoração do seu centésimo duodécimo aniversário, o Homem Mais Velho do Mundo arrancou a máscara de oxigênio da face e balbuciou que felicidade era morrer amanhã cedo intoxicado com aquele maldito bolo de nozes que lhe trouxeram hoje. E mais: que a vida era uma grandessíssima merda e que aquele bando de fedelhos viajantes fizesse o favor de espalhar aquelas palavras para o resto do mundo. E que, se Deus quisesse, aquele seria, finalmente, o seu último desejo.

Cercada pelo grupo de enxeridos em plena Quinta Avenida na Big Apple, uma rica dondoca brasileira em compras comentou que felicidade era cometer pequenos furtos na Macy’s. Pura adrenalina.

Na Cracolândia, ouviram de um indigente chapado que felicidade era saber que no meio do caminho tinha uma pedra no caminho, tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra.

O carrasco do corredor da morte de uma prisão de segurança máxima estadunidense comentou, com certo desdém, que a felicidade era se sentir um dublê de Deus enquanto afrouxava as correias de uma cadeira elétrica recém utilizada.

Do alto do janelão papal, o frei Francisco gritou em castelhano para o público presente na Praça São Pedro que Maradona foi melhor que Pelé e que felicidade era subir toda aquela escadaria do Vaticano contando com um pulmão apenas.

Preso aos tubos, escaras e a uma cama hospitalar há pelo menos dezessete anos, desde que se afogara num balde com água na cozinha de casa, o paciente comatoso do leito 03 não respondeu a nenhuma pergunta, contudo, uma solícita enfermeira garantiu ter percebido que ele movera a sobrancelha direita duas vezes, o que significava, com toda certeza, que a felicidade eram espasmos involuntários a cada dia mais frequentes.

Sentado sobre escombros de um bairro na Síria, um órfão parou de choramingar e posar involuntariamente a sua dor para os fotógrafos de guerra, e a quase todos daquele grupo comoveu ao dizer que felicidade era sonhar com um bombardeio carregando a sua pequena alma infantil para o colo da mãe no Paraíso.

Ao ser inquirido pelo bando, Deus não mostrou as caras para matar a curiosidade dos ecléticos viajantes da barca furada, mas, do interior de uma nuvem, bradou num trovão que felicidade era manter viva no seio da humanidade a mística se de fato que ele existia ou não.