Maura Lopes Cançado talvez não tenha nascido como as outras, tenha sido inventada por vozes que nunca se calavam. Dizia que era filha de russos, que seu tio nascera na China, que um avião caiu porque ela quis. Adorava chapéus vermelhos, tinha pesadelos vívidos, e aos catorze queria ser espiã nazista. Antes dos trinta, já escrevera sobre Deus dentro de um hospício, sobre mulheres soltas atrás das grades. Inventava tudo, inclusive a si mesma. E por isso escrever era a única maneira de não sumir. Foi chamada de gênio e de monstro, mas nunca de possível. Morreu quase cega, num cubículo de manicômio, esquecida até pelos que a citaram em teses. Ninguém ficou para seu enterro. Entre alucinação e lucidez, entre a beleza e o grito, Maura Lopes Cançado escreveu um Brasil que até hoje não sabe onde colocá-la: se na literatura, na psiquiatria ou no esquecimento. Talvez não precise saber. Talvez seja exatamente aí que ela ainda vive, fora do alcance das prateleiras, das certezas, do sossego.
Sua infância em São Gonçalo do Abaeté, interior de Minas Gerais, foi marcada por promessas e silêncios. Filha mimada de um fazendeiro poderoso, cresceu com os cabelos intocados por ordem do pai e o corpo envolto em azul e branco, promessa feita pela mãe em troca da cura de sua saúde frágil. Aos sete anos, invejava o chapéu vermelho da irmã. Casou-se cedo, teve um filho que batizou de Cesarion, como o de Cleópatra. Tudo nela era personagem. Ou presságio.

Maura acreditava que escrever era um chamado. Não apenas um desejo, uma possessão. Chegou ao Rio de Janeiro no início dos anos 1950 decidida a tornar-se escritora; enviava contos e crônicas às redações literárias mais influentes da época, entre elas o Suplemento Dominical, do “Jornal do Brasil”, espaço que reunia escritores e críticos respeitados como Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony e Mário Faustino. Ao mesmo tempo, circulava por consultórios psiquiátricos e boates cariocas, dividindo-se entre apartamentos emprestados e internações recorrentes. Publicar no Suplemento Dominical era seu maior triunfo, e o conto “No Quadrado de Joana”, que retratava a experiência catatônica de uma paciente psiquiátrica, não só saiu na capa como provocou intenso debate literário. Ao lado do sucesso, sua instabilidade crescia: jogou uma máquina de escrever pela janela, derrubou uma estante sobre um jornalista e tentou o suicídio em 1955. Sua vida e obra eram inseparáveis: mecenas e amantes conviviam com crises e surtos psicóticos, literatura misturava-se com manchetes policiais. Os leitores, críticos e médicos já não sabiam diferenciar talento de loucura. Talvez porque, nela, não houvesse mesmo distinção.
Entre 1959 e 1960, durante uma das várias internações no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, Maura Lopes Cançado escreveu seu livro mais conhecido, “Hospício é Deus”. Concebido inicialmente como diário terapêutico e autobiográfico, o livro foi escrito quase em segredo, em folhas soltas, à mão, sob as condições difíceis da instituição psiquiátrica. Publicado pela primeira vez em 1965, pela editora José Álvaro, o texto rapidamente chamou atenção pela coragem com que expunha abusos psiquiátricos e pela força de seu estilo narrativo. Não era apenas um diário íntimo, mas um manifesto literário e político: uma cartografia radical do corpo feminino enclausurado, narrando agressões, eletrochoques e solidão institucionalizada. Mulheres que rasgavam vestidos não por histeria, mas por liberdade. “Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades, em excesso de liberdade”, escreveu Maura. O título nunca foi provocação: era diagnóstico. Para ela, o hospício era uma espécie de sistema teológico perverso, com enfermeiras que agiam como anjos vingadores e médicos como deuses frágeis. O livro ficou décadas fora de catálogo até ser resgatado pela editora Autêntica, que publicou uma nova edição em 2015, trazendo Maura Lopes Cançado de volta à atenção crítica e acadêmica. A loucura, como Maura revelava, talvez fosse apenas outra forma, mais crua e perigosa, de enxergar demais.
Maura Lopes Cançado nunca se autodeclarou feminista, o termo sequer fazia parte do vocabulário corrente do Brasil em sua época. A discussão sobre feminismo só viria com força décadas depois, nas universidades, seminários e teses acadêmicas. Mas Maura vivia como se a palavra já existisse. Escrevia com autonomia radical sobre sexualidade, desejo e repressão feminina em plena década de 1950. Rompeu cedo com o papel convencional de esposa e mãe, abandonou o marido e afastou-se da família, escandalizando sua cidade natal, profundamente conservadora. Em uma reportagem publicada em 2015 pelo jornalista Álvaro Costa e Silva na revista “Brasileiros”, Maura teria admitido, embora o autor não esclareça explicitamente a fonte original dessa declaração, que nutria desejos sexuais por seu sogro, o coronel Praxedes, descrito por ela como “maravilhoso, alto, imponente e importante”. Além de confrontar a moralidade patriarcal, Maura criticou abertamente a psiquiatria dominada por homens, denunciando abusos e desafiando autoridades médicas estabelecidas. Afirmava que ser louca era a única forma de existir sem pedir desculpas. Sua literatura não pedia licença e recusava qualquer censura. Rasgava o tempo e as convenções com a mesma intensidade com que rasgava suas próprias roupas nos momentos mais extremos de suas crises. O preço pago foi alto: isolamento social, ridicularização pública e censura. Ser mulher, escritora e louca já era um excesso; publicar livros sobre isso era simplesmente inadmissível. Maura o fez, mesmo assim.
O diagnóstico oficial era esquizofrenia, acompanhado de crises epiléticas e transtornos dissociativos graves. Os tratamentos eram brutais: doses excessivas de medicamentos sedativos, sessões frequentes de eletrochoques e isolamento prolongado em quartos fortes, onde ela ficava trancada por horas ou dias, sem contato humano. Ao longo de sua vida, Maura Lopes Cançado passou por pelo menos sete instituições psiquiátricas diferentes, enfrentando o que havia de mais desumano na psiquiatria brasileira pré-reforma. Ainda assim, jamais parou de escrever. Por vezes, recebia a ajuda discreta de amigos literatos que reconheciam sua genialidade; em outras ocasiões, arriscava-se sozinha, enviando contos pelo correio em envelopes rabiscados às pressas, escritos muitas vezes sob o efeito debilitante das drogas receitadas pelos médicos. Escrevia à mão, com urgência, como se a tinta fosse o único oxigênio possível dentro daquele cotidiano asfixiante. Em um raro instante de lucidez pública, confessou certa vez que se parasse de escrever, morreria. Não era uma frase figurativa, era um testemunho literal de sobrevivência. Escrevia compulsivamente, quase obsessivamente, com intensidade desesperada, às vezes acumulando páginas que destruía em surtos de desespero, em outras vendo seus manuscritos se perderem de maneira cruel e irrecuperável: um segundo volume de seu diário, “Hospício é Deus”, foi esquecido por um editor num táxi e jamais encontrado; outro manuscrito foi consumido por cupins numa gaveta negligenciada. Ao longo de toda sua vida, Maura acumulou perdas sucessivas, profundas e reais. Nenhuma delas era apenas metafórica. Todas deixaram cicatrizes que o papel jamais conseguiu conter. E talvez seja exatamente por isso que sua literatura persista, porque o que sobrevive dela são menos as páginas que restaram do que o espaço vazio deixado por aquilo que desapareceu para sempre.
Em 1972, num episódio trágico que marcaria definitivamente sua vida e obra, Maura Lopes Cançado estrangulou e matou uma jovem paciente de dezenove anos internada junto com ela na Clínica Doutor Eiras, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O crime chocou profundamente a sociedade carioca da época, sendo amplamente noticiado pelos principais jornais da cidade. Após um julgamento sumário, a Justiça a considerou inimputável por motivo de insanidade mental e determinou sua transferência imediata para o Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito, destinado a criminosos com transtornos psiquiátricos. Ali, Maura foi confinada num cubículo apertado e insalubre, infestado de percevejos e desprovido das condições mínimas de higiene. Nos anos seguintes, sua saúde deteriorou-se rapidamente: passou fome, perdeu grande parte da visão devido a uma cegueira parcial provocada pelas condições desumanas, e enfrentou períodos de solidão extrema. Um dos poucos relatos sobre seu estado nesse período foi feito pela repórter Margarida Autran, em uma contundente matéria publicada no jornal “O Globo”, em 1978. A jornalista descreveu Maura como abandonada, desnutrida, quase cega e emocionalmente devastada. Vivia cercada apenas por uma mala velha repleta de jornais antigos, que não conseguia mais ler devido à cegueira crescente. Implorava a visitantes ocasionais, incluindo jovens estudantes solidárias ao seu sofrimento, que lessem em voz alta para ela, buscando uma forma de conexão com o mundo externo. Uma dessas estudantes, Elizabeth Muylaert, na época com apenas dezoito anos, relatou posteriormente que passava horas lendo para Maura, que a ouvia com uma intensidade quase religiosa, como se aquelas palavras fossem o único alimento que lhe restava. Foi nesse contexto brutalmente real e não metafórico que Maura afirmou: “Se eu relaxar, morro”. Ela não exagerava, sabia que sobreviver dependia da tensão permanente entre lucidez e desespero, entre presença e abandono. Os amigos intelectuais, editores e escritores que antes a apoiavam, já haviam desaparecido há tempos. O silêncio editorial sobre ela era absoluto. Maura Lopes Cançado, que desafiara as normas sociais, médicas e literárias através de suas palavras cortantes, acabou morrendo como sempre temera: sem editor, sem leitor e sem lápis, sem testemunhas que pudessem dar sentido ou conforto às suas últimas páginas, vividas dentro de um inferno real, nunca imaginado.

Publicou apenas dois livros: “Hospício é Deus” e “O Sofredor do Ver”. Não escreveu o romance que queria. Tentou, pediu ajuda a Carlos Heitor Cony, que fugiu da tarefa, mas lhe deu uma máquina Olivetti 22. Os originais sumiram, os arquivos se perderam. Durante décadas, suas obras só circulavam em sebos, vendidas a preços altos, como raridades disputadas por colecionadores. Em 2014, começou um lento processo de redescoberta. Universidades brasileiras voltaram a estudá-la; críticos literários reaprenderam a lê-la com olhos contemporâneos. Em 2024, a Companhia das Letras relançou novamente “Hospício é Deus”, trazendo um posfácio inédito da escritora Natalia Timerman, sinal definitivo de que a obra de Maura Lopes Cançado retornou ao debate literário nacional com o peso que merece. Mas seu nome ainda causa ruído, ainda incomoda, ainda resiste às prateleiras comuns das livrarias. Talvez porque Maura não sirva para vitrines, apenas para frestas, páginas tortas e sublinhados nervosos. Sua escrita sempre existiu para desacomodar.
Talvez ela fosse mesmo um anjo com vocação para demônio. Ou talvez fosse apenas uma mulher com a coragem perigosa de dizer o indizível. Uma mulher que gritou quando era esperado silêncio, que escreveu quando era esperado remédio. E talvez por isso tenha sido esquecida. Ou, pior, ignorada por tempo suficiente para que sua dor se tornasse mito e seu nome, nota de rodapé. Uma mulher que viveu intensamente demais, pensou alto demais, pagou com a própria vida o preço de transformar a escrita em testemunho e o testemunho em insubordinação. Agora, seu livro está de volta às livrarias, desafiando novamente os limites frágeis entre razão e loucura, memória e ficção, silêncio e ruído, numa nova chance de ser lida, compreendida ou novamente ignorada.
Nota:
Este perfil dialoga com o texto “A escritora que podia ter sido”, publicado por Álvaro Costa e Silva na revista “Brasileiros”, que recuperou pioneiramente a figura esquecida de Maura Lopes Cançado. No entanto, amplia e aprofunda a abordagem inicial, trazendo informações inéditas, fontes históricas adicionais e uma perspectiva crítica atualizada sobre a relevância da autora para a literatura brasileira contemporânea.