O que dá medo não é o abandono, é a véspera

O que dá medo não é o abandono, é a véspera

Em tempos de barulho e pressa, quando um livro vira sucesso, é fácil deixar a moda guiar a gente. Foi assim com “Véspera”, lançado em 2021, terceiro romance de Carla Madeira, autora que virou febre literária em 2022, quando “Tudo é Rio” (2014), sua estreia intensa, explodiu no TikTok. Li “Véspera” antes, fugindo da ordem natural, e só depois fui conhecer sua primeira obra. Talvez por isso o impacto tenha sido ainda maior, já que encontrei primeiro seu estilo amadurecido, marcado pela contenção e silêncios que incomodam. Agora, relendo com calma, quero abrir o jogo. O livro me pegou no coração, sim, mas também me deixou inquieta; inquieta no bom sentido, aquele que faz a gente querer ir além do óbvio e entender o que uma obra realmente entrega.

Uma mulher abandona o filho na calçada. É assim que o livro começa. Um gesto seco, impensável, inaceitável. Aqui está o primeiro acerto da autora: ela não liga para o escândalo do ato. Está interessada nos silêncios que antecedem a tragédia.

Carla Madeira não quer saber do drama fácil, da comoção barata, do julgamento moral que esse tipo de situação costuma provocar. Ela quer entender as camadas, escavar as feridas que levaram Vedina, a mãe que abandona, até aquela calçada. É por isso que o romance começa com a ação extrema, mas imediatamente mergulha no passado. Com seus cacos de vidro da sala e da infância, Carla Madeira estrutura o livro em capítulos breves e descontínuos, em que cada retorno ao passado revela não uma explicação, mas uma rachadura. “Véspera” é uma história sobre heranças invisíveis, aquelas que não nomeamos, mas repetimos. Aquelas que juramos escapar, mas acabamos reproduzindo com outras roupas.
O próprio título antecipa essa obsessão temporal. Não é sobre o acontecimento, mas sobre sua iminência. Sobre o tempo suspenso antes da queda, quando sentimos apenas o cheiro da tragédia no ar, mas é muito tarde para evitá-la. Vedina não abandona o filho por maldade; faz porque já foi abandonada antes. Por um marido que nunca soube estar presente. Por uma sogra envenenada pelo moralismo e superstição. Por um ambiente familiar doentio, cheio de mandamentos bíblicos e vazio de afeto.

Véspera
Véspera, de Carla Madeira (Record, 280 páginas)

Não há heroísmo no abandono. Também não há vilania. Há exaustão. Há um limite atravessado, um sistema inteiro, emocional e religioso, que empurrou essa mulher até a beira do abismo e depois fingiu surpresa quando ela saltou. Talvez seja por isso que eu tenha sido envolvida pelo livro de um jeito inesperado. Nunca tive interesse por histórias que envolvam maternidade. Não por desprezo, mas porque essa experiência nunca me coube: nem como projeto de vida, nem como curiosidade literária. Sempre evitei narrativas que tentam salvar a figura da mãe a qualquer custo, como se toda culpa fosse resgatável e bastasse sofrer para ser perdoada.

Aqui chegamos até meu próprio impasse: “Véspera” faz exatamente isso, só que de um jeito que me fez recuar. Carla Madeira não redime a mãe por retórica, e sim por contexto. Não há pedido de empatia e de perdão com discursos emocionais, mas fatos e silêncios que nos fazem entender o que levou aquela mulher ao chão. Eu, que sempre rejeitei redenções automáticas, me vi tocada. O que arrebenta uma mulher, diz o livro sem dizer, não é o filho; é o mundo ao redor, com suas expectativas sufocantes, seus julgamentos e sua surdez seletiva.

A estrutura do romance funciona como um quebra-cabeça afetivo montado às avessas. Com suas idas e vindas entre o presente do abandono e o passado da formação familiar, cada peça revela não uma solução, mas uma nova ferida. Aos poucos, entendemos que Vedina é apenas o último elo de uma corrente que se arrasta por gerações.

A história gira em torno dos gêmeos Caim e Abel (batizados assim, sem metáforas disfarçadas) e seus pares e descendentes. Abel casa-se com Vedina; Caim, com Veneza. O ciclo familiar é tenso, moralista, herdeiro de pais que adoecem mais do que criam. A religiosidade rígida, o alcoolismo paterno, o medo de que a tragédia bíblica se repita moldam as relações com um peso tão grande que o afeto mal consegue respirar. Custódia, mãe dos irmãos, acreditava que estava driblando a maldição ao tentar apagar as diferenças entre os filhos: mesmo nome, mesmo berço, mesmo mundo. Porém, não existe simetria que elimine o que pulsa diferente. O que Custódia conseguiu foi negar aos filhos o direito à individualidade. Criou dois homens espelhados e, por isso mesmo, condenados a se destruírem.

Essa fixação pela simetria forçada contamina tudo. Caim e Abel crescem como o centro de gravidade de uma narrativa que se repete nas esposas e nos filhos. São homens que não sabem amar porque foram treinados para competir, que não sabem cuidar porque foram educados para reprimir. Antunes, por exemplo, é um pai que ama, mas não sabe transformar esse afeto em presença, porque herdou a lógica da substituição: álcool no lugar da escuta. Abel repete esse modelo de ausência silenciosa e afeta o filho com a mesma opacidade que sofreu. E no meio dessa estrutura em ruína estão as mulheres — Veneza, Vedina, Custódia — tentando manter de pé uma casa que já nasceu condenada. Essas mulheres desejam sem pedir desculpas, e erram sem buscar absolvição imediata. Incomodam porque não se encaixam no modelo da mãe redentora ou da esposa devotada. Carla Madeira escreve sobre elas com a coragem de quem sabe que personagens incômodos são os mais necessários.

A escrita da autora é limpa, mas carregada. Há um domínio técnico evidente, que se anuncia antes mesmo de a trama desenrolar. Seus períodos respiram junto com os personagens, com frases que se fragmentam nos momentos de tensão e que deslizam com suavidade naqueles de recolhimento, como se o próprio idioma se curvasse às emoções. Sua estética não se apoia em explosões emocionais, mas em elipses, silêncios e pausas que sugerem mais do que mostram. Há uma violência latente em sua prosa, feita de entrelinhas, gestos suspensos e expressões que param antes do grito. Ela confia na linguagem como quem já sabe que o essencial não precisa ser dito em voz alta. Infelizmente, esta contenção é tanta que, por vezes, a linguagem perde a oportunidade de sangrar junto com o enredo. Os diálogos nem sempre soam orgânicos, parecem mais pensamentos dramatizados que conversas reais. Ainda assim, o que ela consegue dizer com economia de palavras tem peso específico. Carla Madeira não escreve para impressionar. Escreve para comover. Uma criança sozinha na calçada é a imagem perfeita para descrever o leitor ideal de “Véspera”. Talvez por isso não exista exatamente uma solução para o arco dramático proposto na primeira cena. Solucionar não é tão importante quanto provocar.

Terminei o livro, pela segunda vez, com a certeza de que havia lido algo necessário. Não consolador, não construtivo, mas necessário. Porque a literatura, quando funciona de verdade, não está interessada em nos fazer sentir melhor. Ela quer nos fazer ver. E “Véspera” me fez enxergar que o medo verdadeiro não mora no abandono; mora na noite anterior, no silêncio que antecede o gesto inevitável, na certeza de que ninguém chegará a tempo. O medo verdadeiro mora na véspera.