Tem gente que nem se enxerga. É o seu caso?

Tem gente que nem se enxerga. É o seu caso?

Certas brincadeiras da nossa infância desafiam a passagem do tempo. Como brincar de cabra-cega, por exemplo.  Este folguedo também atende pelos nomes de pata-cega, cobra-cega e galinha cega, dependendo da região do país aonde a criançada se divirta. De olhos vendados, um dos participantes será a cabra-cega que tentará pegar os outros jogadores. O primeiro a ser tocado sobe de posto — é eleito como a nova cabra-cega. Em outra versão do jogo, além da regra de precisar alcançar os participantes, a cabra-cega  deverá adivinhar pela audição quem foi pego.

Vamos em frente. Em terra de cego quem tem um olho é rei. Aproveitamos o ditado para sublinhar as cataratas atitudinais que nos acometem dia a dia em áreas diversas do nosso colóquio social. Muitas vezes, por sinal, nem colóquio há. Nenhuma interlocução, diálogos.

Há monólogos, solilóquios. Pessoas monocórdicas que, sem se darem conta, gastam sua existência batendo sempre a mesma tecla. Aí vem alguém e diz: água mole em pedra dura tanto bate até que fura, replicando mais um bordão popular. Mas e a teimosia, a renitência, os cabeças-de-mula: aonde se encaixam nesta situação?

É difícil ter ouvidos para ouvir, olhos para enxergar e observar nuances relacionais.  Bocas sábias que só se pronunciem e divulguem o que realmente importa.

A ansiedade reina absoluta na contemporaneidade. Por causa desta soberana cometemos com frequência desatinos de toda ordem. Unhas roídas com sofreguidão — tanto as das mãos, como as dos pés. Chocolates engolidos à exaustão — sem mastigá-los, vale sublinhar.

Bacias sucessivas de pipoca devoradas durante a exibição de longa metragem na teve led novinha, de 46 polegadas. Noitadas desvairadas regadas a litros de álcool — fermentado ou destilado, tanto faz.

O corpo entregue às escuras aos anônimos usuários das mídias sociais, que em determinado dia resolvemos tangenciar presencialmente. “Como você se chama, hein?” Deixe disso. Pare com isso. Não vem ao caso saber detalhes sobre ninguém. A questão primordial é que a carne é fraca, fresca e disponível. Pronta a se banquetear e a integrar também o cardápio de comensais de gula devastadora.

No filme “Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante”, de 1989, Peter Greenaway nos desconcerta com a bizarria da história.  Obviamente não contaremos o enredo de cabo a rabo — sobretudo para não estragar o interesse de quem ainda não assistiu. Como tira-gosto, porém, serviremos a sinopse: o criminoso Albert Spica e sua mulher Georgina jantam diariamente no restaurante Le Hollandais, onde Richard é o chef. Cansada da estupidez e da grosseria de seu marido, Georgina se torna amante de um colecionador de livros, Michael, outro frequentador do lugar. Com a cumplicidade de Richard, eles levam o caso adiante nas dependências do próprio restaurante, até que Albert descobre a traição e…

Em “La Grande Bouffe” (A Comilança) lançado em 1973, dirigido por Marco Ferreri, cujo elenco ostentou atores do naipe de Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazzi, o tema — deduz-se logo — vincula-se à compulsão.

O gesto automático, frenético e cego de entregar-se instintiva e amplamente a prazeres, sem qualquer sensatez ou freio. Naturalmente é mais agradável não enxergar limites, transgredir barreiras, defrontar-se com o famoso bom senso cartesiano e regiamente ignorá-lo, pois não convém à nossa soberba e nem à altivez de irrefutáveis  sabichões.

Na antológica fábula de Hans Christian Andersen, “A Roupa Nova do Rei” também conhecida por “O Rei Está Nu”,  publicada em  1837,  um bandido, fingindo-se de alfaiate, afirma  diante de  um rei estar apto a tecer  uma roupa muito bonita e cara para o soberano — com um único senão : apenas as pessoas mais inteligentes e astutas poderiam vê-la.

O rei, extremamente vaidoso, como era de se supor, aceitou a proposta e pediu ao bandido que tecesse uma vestimenta dessas para ele.

Exultante, tempos depois, sua majestade decidiu marcar uma grande parada na cidade para exibir seu traje especialíssimo. Todavia, uma criança, durante o desfile, desmascarou a farsa, gritando: “O rei está nu!”. Neste momento o rei se encolhe, pois desconfia da veracidade da sentença. Mas mantém-se orgulhosamente em seu trajeto, como se nada houvesse ocorrido.

Esta fábula de imediato nos remete a inúmeras e incontestáveis ilações, como as relacionadas aos nossos políticos, que, municiados de corriqueiro cinismo e desfaçatez — garantem ser “cordeiros em pele de lobos”.  O povo, cego, ignorante ou aficcionado em delírios multiplicadores de miragens — crê piamente no palavrório acintoso dos discursos — quase suplicando para continuar, ad vitae, a ser engambelado por seus ilustres desrepresentantes eleitos.

Referindo-se à própria obra “Ensaio Sobre a Cegueira”, o escritor José Saramago desabafa: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”.

Afinal, quantos de nós possuímos a coragem de retirar a venda dos olhos da consciência e atestar, sem anestesias ou eufemismos outros,  o que nos circunda ou percorre nossos mais íntimos pensamentos. Teatros, representações, personas, simulações. Intenções escamoteadas pela vã esperteza do ludibrio. Deliberações sinuosas e espúrias. Sorrisos de noites sem lua.

Nasce um clamor de indecifrável origem: “Humildade, bravura, dignidade cadê vocês?” A pergunta se anuncia carregada de aflição.

“Ah, estávamos cansadas de dar murros em ponta de faca, dirigindo-nos às surdas, cegas e prepotentes criaturas deste mundo. Tiramos umas férias, então.”