Mais triste que um blues

Mais triste que um blues

Enquanto aguardava minha mãe coar um cafezinho no seu velho e desgastado coador de pano — ela insistia em não aderir aos desodorantes roll-on, ao telefone celular e aos moderníssimos filtros descartáveis com seus impressionantes poros microscópicos — pensava que, na verdade, eu deveria mesmo era ir-me embora pra casa, ficar a sós, curtir melancolia em carreira solo, colocar um blues antigo pra tocar na vitrola (Minas e vitrolas não há mais, caro poeta; hoje em dia, só hardwares, softwares, redes sociais, bisbilhotagem caseira e internacional, além, é claro, da vida passando mais apressada que o habitual), e tomar uma garrafa de bourbon. 

Naquele dia, especificamente, os olhos embaçados do cão doente, prostrado no canto da cozinha, não estavam mais tristes do que os meus, posso lhes assegurar. “Penso que de hoje o coitadinho não passa”, lamentou minha mãe, ao mesmo tempo em que depositava duas colheradas e meia do pó preto dentro do seu famigerado, porém, combativo coador.

Enquanto, por pura falta de assunto mais agradável, alinhavávamos nomes de pessoas queridas que já tinham desaparecido, tornamos aquele café ainda menos atrativo para mim (ou seria para ambos? ela não parecia afetada com o tema). Com uma gana insensível, a melancolia invadiu, tomou conta do ambiente, mais do que aquele fedor perigoso de gás metano. “Mãe, tem que mandar trocar esta mangueira. Ainda tá vazando gás, percebe?!”.

O cachorro moribundo, com o seu visgo terminal, até que teve sorte, ainda que na iminência de ser guilhotinado da face da terra pela tal doença do carrapato. Compreendesse mesmo, a fundo, nas minúcias, a linguagem dos seres humanos, o bicho possivelmente deixar-se-ia engasgar com uma lasca de osso, a fim de escapulir daquele colóquio infrutífero (se a conversa matava tempo, ao menos, não matava cachorros, só os importunava), sem pé nem cabeça, pior de tudo, sem conclusões contundentes.

Na sua simplicidade, naquele otimismo alvissareiro que flutuava entre a ingenuidade e o fanatismo religioso, mamãe supunha que, do lado de lá, descidos a tal mansão dos mortos, possivelmente, num espaço reservado lá em cima, por detrás das nuvens, por detrás das visões das lunetas e das retinas dos astronautas, nalgum lugar especial, haveríamos de reencontrar parentes, não na forma convencional, mas, na forma gasosa, supostamente, qual um espírito, entenda-se: seria uma espécie de sombra, um perfil, uma silhueta de pessoa, uma pista apenas, um semblante, quem sabe, mesclado aos odores particulares, facilmente identificáveis, além, é claro, das vozes e dos quereres inconfundíveis dos indivíduos.

Impertinente desde o parto (embora minúsculo, passivo, e 100% dependente de uma mulher e sua placenta, eu produzi nela dores imensuráveis durante a peleja da desova) questionei se o tal resort das almas não seria por demais enfadonho, frustrante, uma vez que desprovido de colorido, abortado de matéria sólida que se apalpasse, minguado de luminosidade de se regozijar os olhares. Ela riu repleta de misericórdia, e o movimento brusco da gargalhada fez com que derramasse café sobre o forro de linho branquinho. “Porcaria!” — ela xingou, obtendo o meu irrestrito apoio.

Falar, debater, lucubrar a respeito de determinados temas controversos nem sempre é uma missão agradável: a morte, a traição amorosa, a falta de fé num credo que seja, o acometimento das hemorróidas. Tudo é segredo. Tudo é tabu ou mistério. Então prosseguimos o nosso papo grunge, entremeado com o meu sempre inconveniente sarcasmo, enquanto o totó mantinha uma luta canina para se sustentar.

Mais pegajoso e assoberbado com teorias conspirativas do que um sociólogo de esquerda mal humorado, eu testei a vocação materna daquela senhora, ao levantar duas alternativas, digamos, bastante plausíveis.

A primeira delas: se houvesse, de fato, vida após a morte, a doutrina kardecista, de longe, parecia a mais palatável, digerível, porquanto fizesse crer que cada ser humano imperfeito possuía uma espécie de recall espiritual, além de outras vivências futuras de lambuja, a fim de depurar o espírito.

A segunda: a vida seria uma só, e ponto. Morreu, estava morrido, acabado. “No more lonely nights”.  Nada de almas, nada de sombras, nada de silhuetas, nada de reencontros emocionantes nesta ou noutras esferas.

Enquanto sapecávamos os lábios com um café fumegante, eu reiterei a minha crença na segunda opção, como se ela tivesse exigido de mim uma escolha. Mamãe pigarreou, fez careta, reclamou que o café tinha ficado muito amargo, quando, na verdade, o amargo ali era eu, e não a cafeína.

Saí daquela casa com a barriga cheia de biscoitos e a cabeça vazia de respostas. Fui acompanhar uma manifestação, dentre tantas que pipocavam pelo país nas últimas semanas. Desta feita, eram centenas de médicos, estudantes de medicina e simpatizantes da causa trajando roupas e jalecos brancos.

Ri sozinho, enquanto maquinava: se existia um Céu, por causa da brancura, deveria ser parecido com aquele cenário, a não ser pelos cartazes que traziam mensagens ambíguas do tipo “Ei, Dilma, vai tratar no SUS” e “Queremos hospitais padrão FIFA”. Sem contar que, nos últimos dias, de acordo com a mídia, médicos e o Governo estavam mais para capetas do que para santos.

Enquanto a multidão branca ganhava a avenida, o telefone celular tocou (sim, eu era sim adepto às maravilhas da modernidade, como as bonecas infláveis que sussurravam “fuck me, yeah” em cinco idiomas de surround sound, o débito automático em conta, e a síndrome do pânico). Apesar dos apupos da multidão, ouvi minha mãe chorando do outro lado da linha (ela quase gania): “O Bartolomeu morreu”.

A passeata prosseguiu. A vida também prosseguia — e prossegue — entremeada com nascimentos, mortes, perrengues mil, e muita ignorância. Por exemplo, só pra lhe atazanar: haveria vida em Marte? E mais: havendo vida em Marte, haveria vida após a morte para os que vivessem em Marte?

Não satisfeitos com as dúvidas terrenas mais irrisórias, do tipo “quem está com a razão: os médicos ou a Presidenta Dilma?”, buscamos pistas noutros planetas, qualquer migalha esotérica que nos conforte, qualquer mínima evidência que nos acuda de uma vez para sempre: sim, há vida depois da morte, e ela é muito boa, bem melhor que esta aqui.