Ao tratar com ternura a luta do outro, a nossa fica mais leve

Ao tratar com ternura a luta do outro, a nossa fica mais leve

A criança chora. O telefone pifa. A luz se apaga. É preciso trocar a fralda, a bateria do celular, a lâmpada. Na mesa, quatro boletos em aberto, mas a grana do freela pagou só o conserto do telhado. Época de chuva complica tudo. A cabeça explode, o cansaço bate e Ana tem a certeza irrefutável: todo o caos do universo resolveu fixar residência em sua vida. Na casa ao lado, o vizinho chora a doença da mãe que, em dolorosa coincidência, chegou no mesmo mês do divórcio que tem lhe tirado a paz. Pela manhã, ao colocar o lixo fora, um olhar carinhoso representaria a complacência de que Ana precisa. O vizinho passa. Ela anseia por atenção, por alguém que pergunte como está. Ele, de cabeça baixa e boca cerrada, limita o contato a um aceno seco. “Grosseiro”, pensa Ana, enquanto o homem segue sem pensar em nada.

A todo momento alguém espera do mundo o alento que falta. Aguardamos que pesares sejam amenizados pela compreensão alheia, pela boa vontade do outro em preencher com graciosidade buracos incômodos. Que bom seria se a cada dia ruim encontrássemos pelas ruas sorrisos sinceros, se para cada briga em casa houvesse uma praça com pipoqueiro simpático e balões coloridos. Por toda parte, porém, há gente passando por males e tropeços. No nosso egoísmo ora proposital, ora inconsciente, ditamos a regra do jogo como juízes de um time só. Desejamos que nossa cara amarrada seja aceita e remediada, mas torcemos o nariz para quem, do outro lado do tabuleiro, externa com humor azedo as turbulências do caminho.

Há um tempo transita pela internet a bonita frase: “Todo mundo que você encontra está enfrentando uma batalha sobre a qual você não sabe nadaSeja gentil sempre”. As máscaras sociais camuflam as experiências desconcertantes de cada um. O resultado são indivíduos cada vez mais reclusos na própria agonia e pouco dispostos a enxergar com ternura a luta do outro. E entre perrengues, rosnadas e buzinas chega um determinado momento em que é preciso escolher entre alimentar o amargor ou reverter essa lógica negativa com empatia. Ao optar pela segunda hipótese, é necessário tirar o mundo do umbigo e entender que quando alguém não age como gostaríamos, talvez simplesmente não consiga. Talvez o outro não esteja apto a salvar seu dia porque também carrega pedras e cruzes.

Ao decidirmos tirar dos olhos o carrasco julgador e dar lugar à delicadeza, as coisas melhoram. É fácil? Não. Eu faço? Pouco. É a forma mais eficaz de tornar viável essa vida desafiadora e, tantas vezes, impiedosa para todos nós? Eu diria que sim. E então, exercitando alteridade, a nossa própria batalha fica mais leve nesse quebra-cabeça de convívios truncados, histórias cruzadas. Talvez amanhã o vizinho sorria. A criança se acalme. O telefone toque. A luz se acenda.