Ganhador do Oscar, filme com Julia Roberts, que lotou cinemas e foi aplaudido de pé, está na Netflix

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Nações até podem não carecer de heróis. Entretanto, gente comum, que paga contas, cria filhos, adoece sem direito a médico, silencia diante de injustiças de toda natureza porque não se reconhece como parte do sistema e aquiesce com a realidade de uma velhice solitária, desde que sem mais humilhações, clama por seus salvadores, de onde quer que eles venham. Erin Brockovich, a mulher de talento do filme de Steven Soderbergh, muito antes de candidatar-se a redentora de alguém, reivindica um emprego, qualquer emprego, preferencialmente um com carteira assinada e benefícios — mas caso ofereçam-na só a renda bruta, nossa anti-heroína também aceita de bom grado.

Autodidata, Erin merecia a vaga no consultório do doutor Jaffe, de David Brisbin — a moça conhece um pouco de tudo, da consistência do muco à coloração suspeita da urina de crianças doentes, passando pelo material usado em construções modernas, uma pista para o que virá no segundo ato, e “geologia”, a ciência que se dedica aos mapas, segundo ela. Devagarinho, as muitas trapalhadas de Erin, inicialmente apenas verborrágicas, alastram-se pelo corpo todo e, quando o espectador se dá conta, foi dominado pelo carisma de Erin, a multitalentosa, o que só é possível porque encarnada pela força da natureza que é Julia Roberts. Antimocinha por excelência, Roberts nunca foi exatamente uma linda mulher — apesar daquele sorriso capaz de derreter geleiras glaciais (na lua), daquele narizinho arrebitado, das maçãs sobressalentes do rosto e do resto, que Erin valoriza como ninguém —, porém, transcorridos mais de vinte anos, qualquer criatura minimamente honesta reconhece sua proficiência inabalável, sobretudo para personagens moralmente dúbias, em que virtude e vício seguem roçando-se uma no outro até que, claro, aquela prevaleça sobre este. Destarte, não é exagero apontar os pontos de intersecção entre Erin Brockovich e Vivian Ward, ainda que possam também representar a antítese uma da outra. A prostituta que encabeça o romance agridoce de Garry Marshall (1934-2016), lançado em 27 de julho de 1990, não arreda um milímetro de seu brio instintivo e autocensura adquirida, como a protagonista do filme de Soderbergh, mas tem ambições que passam longe dos modestíssimos sonhos da mulher-maravilha de “Erin Brockovich”. E é precisamente por isso que esta mulher, uma década mais velha que a primeira, chega lá, no topo.

Ao longo de todo o primeiro ato, uma palavra tem o condão de definir a vida de Erin: dinheiro, ou a falta dele, a tal ponto que seus três filhos pequenos estão sempre com um ar meio assustado, do susto da fome. Uma subtrama ligeira, mas altamente eficaz, com menções a cirurgias que escandalizam os mais sensíveis, leva a personagem de Roberts ao banco dos réus. Ela deve uma bolada de dezessete mil dólares, fora os juros, não pode quitar a fatura e, assim mesmo, contrata Ed Masry, o advogado experiente, mas evasivo, de Albert Finney (1936-2019). A natureza dialética de Masry compõe o par ideal para Erin, por mais que ela relute a admitir, e Finney e Roberts encenam os melhores lances do filme, mormente depois que o velho lobo dos tribunais é enquadrado pela ex-cliente e não vê outra alternativa se não contratá-la. Já como sua subordinada, atrevida como nunca, Erin xereta uns papéis amarelados e redescobre um processo já meio esquecido. Esse é o gancho para todas as reviravoltas até o desfecho, centradas na malandragem homicida da PG&E, a companhia responsável pelo abastecimento de gás, água e eletricidade da Califórnia, ainda hoje implicada em falcatruas um pouco menores.

O romance entre Erin e George, o bruto amoroso de Aaron Eckhart, é alvo da torcida de todos, mas está sempre por triz. No campo profissional, Erin Brockovich, sem diploma universitário, ajuda Ed Masry a conseguir uma indenização de 333 milhões de dólares para os afetados pela ganância e pela incúria da PG&E, a maior num processo direto em toda a história dos Estados Unidos. A água contaminada com cromo-6 distribuída pela empresa provocou mais de seiscentos casos de câncer hepático e renal, com mortes e complicações graves. Brockovich levou dois milhões, e segue sua vida.


Filme: Erin Brockovich — Uma Mulher de Talento
Direção: Steven Soderbergh
Ano: 2000
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10