Os corações são órgãos elétricos que pulsam amor e ódio

Os corações são órgãos elétricos que pulsam amor e ódio

Deparei com o Chaninho num barzinho. A rima é pobre, mas, o encontro foi deveras promissor. Cruzamo-nos por acaso. Entre goles de birita e cascas de leitoa, Chaninho passou a noite inteira comovido, cálido, beijando-me as mãos e a cabeça. Não dava pra brincar com a onda conservadora da extrema-direita. Eu disse primo, para já com isso, pelo amor de Deus, senão alguém ainda vai pensar que somos gays e vamos apanhar com tacos de bilhar confeccionados com mogno de primeira linha da floresta amazônica, o último pulmão verde que ainda resta no planeta. Sim, tinham umas mesas de sinuca no estabelecimento, cercadas por homens barrigudos e mulheres com traseiros patrióticos dando sopa para nós, indigentes afetivos.

Chaninho gargalhou, inspirado pela gratidão e pelo contentamento do encontro. Humor destravado, carisma à toda prova, lançava perdigotos nos meus óculos, osculava a minha calva com esmero de mãe, exibindo os degradados, turvos, judiados dentes de fumante inveterado, mais os nacos de suã-de-invertebrados presos nas gretas escuras da sua arcada tabagista.

Ainda era cedo da noite, mesmo assim, pensei que o Chaninho já pudesse estar embriagado àquela altura da happy hour. A fama que corria desde sempre era que ele dormia abraçado às garrafas. Entretanto, as cenas espalhafatosas de afeto incontido nada mais eram do que a comoção explícita, o contentamento após tantos anos desde que nos esbarramos pela última vez. Melhor assim: encontros fortuitos no bar do que comparecimentos formais no cemitério.

Antes de topá-lo sozinho na mesa 14, eu já tinha cruzado por um ex-professor de Anatomia das Aves da Faculdade de Medicina dos Pássaros, o qual, recentemente, foi excluído, a contragosto, da minha numerosa, porém, volúvel, fútil, enfadonha lista de seguidores nas redes sociais. Aquela coisa de viver conectado estava me dando nos nervos. Fui impelido a deletar o ilustre catedrático por causa dos recalcitrantes insultos a mim direcionados durante o período eleitoral conturbado, ocasião em que os debates políticos espocaram, especialmente, na internet, como se não houvesse amanhã, como se fossemos completos desconhecidos, como se ele não tivesse, durante a minha juventude, me instruído a respeito dos voos ancestrais e da teoria do atrito do vento contra as asas da imaginação.

O constrangimento do encontro aleatório foi inevitável. Eliminar pessoas tóxicas do convívio virtual fazia de mim uma espécie de divindade. Eu sumia com os inconvenientes agressivos num piscar de olhos, no reles toque do fura-bolo sobre a tela do smartphone. Espertos são os mentecaptos que nunca se conectam com a realidade. Meu ex-professor parecia combalido, envelhecido e, acima de tudo, bêbado. Trocamos palavras frias, automáticas, obrigatórias, do tipo como vai, passe bem e até mais ver.

Voltando à alegria esfuziante da mesa 14, deparei com o Chaninho contando piadas de freira para uma trinca de serviçais pecadores. O meu primo continuava caquético, fleumático e, acima de tudo, desconectado do universo high tech. Carregava no bolso da sua camisa floral, espalhafatosa, um conveniente maço de Jeronimo’s e um telefone celular antiquado, em péssimo estado de conservação. Eu alertei primo, nunca mais coloque o telefone no bolso esquerdo, no lado do coração; sabe-se lá que tipos de males irreversíveis as ondas eletromagnéticas emitidas pela bateria dessa droga poderão impingir ao ritmo cardíaco original, cujo compasso das batidas é regido — e muito bem regido — por diuturnas, incansáveis descargas elétricas que mantém a bomba miocárdica pulsando sangue na cadência bonita do samba, metida dentro da gaiola do peito, da qual só se pode escapar com excessos de imaginação. Os corações são elétricos. Isso explica muita coisa. Ou não explica patavina nenhuma. A vida é coisa que acontece.

A nossa resenha casava bem com o Cuspe gelado, as bundas alegres do mulheril e os cubinhos de barriga suína fritos na banha de ornitorrinco. Rememoramos os bons e os maus momentos vividos. Sua mãe de 103 anos; a minha, de 83. Perdemos a conta, confundimos os mortos da família, misturamos quem tinha morrido com quem ainda pelejava pela subsistência. Mais ainda. Exaltamos os amores que tivemos, os que não tivemos e, principalmente, os que inventamos. Elogiamos os filhos, mutuamente. Maldissemos os empregos miseráveis de outrora. Lamentamos aquela viagem dos sonhos que nunca se concretizou. Nos gabamos pelos bagres fisgados, pelos olhinhos, com varinhas de bambu. Quanta crueldade, lembra? Um parente que suicidou. A tia que perdeu o juízo. Os casamentos que tinham dado perda total. Chegamos à formidável estatística de 80% de uniões malogradas no seio familiar. Números preocupantes, especialmente, para nós dois que continuávamos casados.

Chaninho embargou a voz, levantou-se, saiu para fumar na calçada. Mundo sem graça. Não se fumava mais dentro de bares, restaurantes e outros estabelecimentos públicos, como igrejas e cabarés. Um vendedor ambulante passava nas mesas oferecendo a sorte grande nos jogos de loteria. Tive pena e acabei comprando uma rosa de um guri, sem saber o que fazer com aquele botão. É óbvio que não me ocorreu dá-la de presente ao Chaninho. Um sujeito com aparência tísica, que se dizia escritor de histórias metafísicas, recomendou certos livros autorais de pegada escatológica. Lógico: uma mão lava a outra, sabem como é; acabei arrematando dois exemplares da sua lavra literária; títulos improváveis como “Faz de conta que o amor é da sua conta” e “Poemas afáveis para amolecer corações de pedra”. Um sujeito passou com um boné na mão e um saco de bosta amarrado na cintura, o qual, na verdade, tratava-se de uma sacola do Pão de Açúcar preenchida com excremento de crocodilos do Rio Nilo, mas, isso ninguém sabia, a não ser eu mesmo, o responsável por essa história prolixa e exaustiva. O esforço de marketing daquele mendicante fez com que muitos clientes embrulhassem o estômago e arrancassem dinheiro da carteira só para se livrar dele.

Cliente assíduo daquela birosca, amigo íntimo de todos os garçons, persona grata, queridíssima, naquele adorável antro de perdição gastronômica, Chaninho cambaleava entre as mesas, desfilando o seu semblante de faquir, por si só, risível, carismático, cumprimentando pessoas de sempre, bebuns corriqueiros, parceiros retumbantes da boemia. Antes de se sentar, beijou-me de novo na testa, claramente condoído e repetiu, pela enésima vez naquela noite quente: Primo, eu te amo, saiba que eu te admiro e que eu te amo muito.