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Havia uma leva de desesperançados, oprimidos e curiosos no parapeito daquele viaduto sobre a Rua da Amargura, famoso na cidade inteira por servir de suporte aos poetas, bêbados, suicidas e ao público em geral que se amarrava num melodrama. Cronos, o filho de Gaia, estava ali em busca de um rosto, um conjunto novinho-em-folha composto de pele, nariz, lábios, pálpebras, sobrancelhas e expressões, que seria recortado, desinfetado e colado pelos médicos cubanos numa feiosa cratera esquelética onde antes havia uma face de mulher. Por que trouxeram os cubanos? Ora, faltavam médicos, vontade, ataduras e estádios de futebol no mercado.

Não sejamos econômicos nos detalhes: a cara da velhota era um buraco muito maior do que qualquer um dos milhares de buracos que o frouxo prefeito daquela metrópole não se dignava a entupir com asfalto nem que a vaca tossisse. A operação tapa-buraco, portanto, era uma missão pessoal, particular, familiar, compulsória. Mesmo sendo filho único daquela solitária criatura, há tempos o sujeito se mostrava mais negligente com a genitora do que o próprio prefeito com os buracos da cidade.

Falando num dialeto esdrúxulo-cacofônico que misturava o castelhano ao português errado, a equipe médica da Santa Causa de Mixórdia — que fora trazida às pressas pelo governo brasileiro, parte dela montada a cavalinho num banana-boat, parte dela remando numa barca furada cuja carranca remetia a Fidel Castro, ambas embarcações pintadas à mão com as cores oficiais da bandeira do Brasil e de Cuba — passou a batata caliente para o colo do Cronos: não havia rostos disponíveis nos estoques das geladeiras do Estado; que ele mesmo se virasse, se ocupasse em correr atrás de uma fácies compatível, de aparência saudável, em bom estado de conservação, para ser transplantada à senhora sua mãe.

O Ministério das Doenças, é claro, proveria as gases, o iodo, os fios de sutura, o ilegítimo uísque de Maracangalha, e uma equipe de quatro enfermeiros marombados que fariam, não apenas os curativos de praxe, mas, a contenção da velhinha, ao passo que os cirurgiões fugidios da ilha dos Irmãos Castro procederiam à colagem de um rosto zero-bala.

Dizem os leigos e as enciclopédias que os urubus iniciam o seu banquete bicotando primeiro nos olhos da carniça. Uma vez que ele não era uma ave, aquilo não era ainda uma carniça, e ele tivesse uma fome de cão (afinal, decorreram cerca de três dias sem que o estimado canídeo fosse alimentado por sua dona), Atlas escolheu a língua, que foi a parte do corpo que lhe pareceu mais atrativa, suculenta e protuberante. Cravou-lhe os dentes com a disposição dos famintos.

Ao consultarem os búzios e medirem os teores de tutano nas poças de sangue encontradas no tapete da sala, os fascinantes profissionais da perícia médico-legal-e-bacana descreveram o ataque da seguinte forma: Gaia contava 89 anos e morava sozinha numa quitinete com Atlas, um jovem inexperiente cão labrador que, até então, parecia mais dócil e atencioso que um Deputado Federal em busca de verbas parlamentares.

Acometida por frequentes e abissais lapsos de memória (por exemplo: ela não se lembrava como se escovavam os dentes, e nem se acreditava em Deus ou não), ela teria se esquecido de injetar a insulina na pança, advindo, por consequência, uma estupenda hiperglicemia, a qual evoluiu para um coma diabético que a derrubou da cama, deixando o seu sangue espesso e com sabor de groselha. O aroma adocicado da carne, aliado à impressionante fome canina, levou Atlas a lamber, mordiscar, devorar o rosto da dona inerte, que só não teve outros nacos de carne arrancados pelo totó porque os vizinhos meteram os pés na porta, derrubando-a.

Como eu frisei no início, era noite e havia um sem número de seres apáticos e seres ociosos empoleirados na beirada da ponte do viaduto, como se fossem galinhas dormindo num poleiro, aguardando a sua vez para pularem ou aplaudirem, dependendo da situação. O esquema era mais ou menos organizado: de acordo com as senhas distribuídas por uma cigana cega, havia uma lista com os pseudônimos das pessoas decididas a saltarem naquele dia. Não havia mulheres auto-liquidantes por ali, o que não era surpresa alguma, considerando que as mulheres são, emocionalmente, muito mais fortes que os homens, apesar de acometidas por tiques, chiliques e muita TPM.

Como o trânsito estivesse intenso, ninguém saltara ainda naquele dia. Alheios ao sofrimento das almas alheias, uma dupla de moradores de rua disputava um estranho campeonato de cuspe ao alvo, no qual sairia vitorioso quem conseguisse acertar o maior número possível de capôs. Caminhões valiam 5 pontos; picapes de carrocerias estendidas, 10 pontos; carros de passeio, 15 pontos; capacetes de motociclistas, 100 pontos.

Havia também no meio daquela trupe inimaginável um criminoso comum muito procurado pela polícia, que estava ali porque a polícia não estava, e pelo simples prazer de assistir à morte de mais um ser humano só para apreciar o tombo. Caprichos de psicopata, vocês sabem.

“Tempo é dinheiro”, reclamou o diretor do hospital onde Gaia agonizava. Já era a terceira noite consecutiva que Cronos comparecia àquele mirante de derrotados delirantes, em busca do rosto perfeito para a genitora moribunda. O plano que maquinava na mente era o seguinte: tão logo o portador do rosto escolhido saltasse do viaduto, ele correria pelas escadas até o meio da rua, onde ficaria de prontidão, zelando do corpo até a chegada do IML, a flamular um documento oficial do Ministério das Doenças, um atestado médico legítimo que lhe garantia preferência na extirpação da face do doador, a despeito do desejo dos seus familiares ou responsáveis, já que uma mulher idosa e solitária padecia numa maca de hospital público, sem as mínimas condições higiênico-sanitário-afetivas.

Então, Cronos, o filho de Gaia, sondava rosto a rosto, numa célere corrida contra o tempo. O risco de que aquele inédito estremecimento interior fosse puro remorso era enorme. Tentou afastar o pensamento de que pudesse ainda nutrir alguma migalha de afeto pela mãe. Na sua cabeça, fazia aquilo por obrigação social. De fato, sentia-se meio constrangido, envergonhado, pois imaginava Gaia passando privações numa maca de hospital público, ocupando espaço de gente mais nova e feliz que ela, sem ter boca pra comer, sem ter pálpebras pra piscar, chorando lágrimas adocicadas, sem sequer poder pentear os cabelos, pois, se olhasse num espelho, enxergaria uma fisionomia que não era mais a sua, mas a de um buraco, como aquele que carregava no peito desde sempre.

Não foi necessário que os veterinários oficiais do Governo fizessem do cachorro barras de sabão, como era o desejo da vizinhança. Saciado após deglutir o rosto enrugado e adocicado de Gaia, tomado de culpa por comer a própria dona, Atlas sentiu todo o peso do mundo sobre os seus ombros e, antes mesmo que os sádicos da carrocinha laçassem-no pelo pescoço, saltou através da janela do apartamento, obtendo morte instantânea.

A lua fez a sua parte e, finalmente, Cronos enxergou um cenho interessante no meio da trupe. De fato, ficou particularmente fascinado com as feições suaves de um homem que se aproximava, sem vacilar, do parapeito do viaduto. Se não fosse coagido pelas autoridades sanitárias a conseguir, de sobressalto, a toque de caixa, um rosto para a sua mãe, poderia salvar aquele homem de traços delicados, numa prova inequívoca de amor à primeira vista.

Mais uma vez, sentiu raiva de Gaia, que há tempos desamava, e ficou se perguntando por que diabos ela não acionou o maldito botão de alerta da sua coleira de emergência (ou melhor, colar de emergência), um moderno e eficaz dispositivo cedido em regime de comodato pela empresa Disque Solidão, o qual ia atrelado ao pescoço, constituindo uma das ferramentas alvissareiras mais utilizadas por solitários do mundo inteiro.

Era tarde demais: quando o sujeito gritou “Jenônimo!” e saltou no breu, acenderam-se os flashes de dezenas de smartphones, e não houve tempo de perguntar o seu nome. Quem sabe, chamar-se-ia Ícaro, pois, ao invés de se espatifar no chão — que era o que todos ali esperavam dele — voou, plainou sobre motos e  carros, sendo atingido apenas por uma chuva de cuspes da plateia desapontada.