Machado de Assis e o Camaro Amarelo

Machado de Assis e o Camaro Amarelo

Na década de 1980 as músicas sertanejas tinham entre os temas recorrentes o fim do amor, a dor (ou medo) de ser abandonado e a paixão não correspondida. Hoje, com o chamado sertanejo universitário, não apenas o estilo musical mudou — transformando-se num subgênero pop que, em muitos casos, são diferenciáveis entre si —, como os temas também mudaram. Não fiz nenhuma grande pesquisa para identificar os temas da atualidade, mas examinando minha mente, tentando buscar dentro da limitada quantidade de letras sertanejas universitárias que consigo resgatar, o tema que me vem à mente mais facilmente é: pegar mulheres (no plural, claro!).

Quem já ouviu a música “Camaro Amarelo” sabe do que estou falando, já que suas pobres rimas tratam aparentemente deste tema. Resumo aqui a ideia da letra: o sujeito da música nutria algum interesse não romântico por alguma mulher que o desprezava. Então, do nada, o sujeito recebeu a herança do pai e aplicou o dinheiro na compra de um carro. Modelo: Camaro. Cor: Amarela.

Eu poderia repetir o comportamento de alguns e criticar a música ao dizer simplesmente que o sujeito está comemorando, feliz da vida, por ter conseguido uma boa grana com a morte do pai — o que representaria um ato de muita insensibilidade (da parte do sujeito, não da minha). Poderia, inclusive, criticar aqueles que ouvem a música e celebram, em tons de alegria, a morte do progenitor do sujeito. Poderia, mas não o farei. É verdade que as músicas sertanejas, ou sertanejas universitárias, estão repletas de construções logicamente frágeis e esteticamente inexistentes que deixam transparecer a péssima formação do letrista — em que universidade ele estuda mesmo?

Aí veio a herança do meu veio,
E resolveu os meus problemas, minha situação.

Os versos acima ilustram o ponto da virada em que o sujeito mudou de vida. Reparem que, apesar de o sentido dos versos conduzirem para a constatação óbvia de que o pai do sujeito morreu, a letra não diz isto explicitamente. E se não está dito, resta interpretarmos. Lembremos que existe também a possibilidade de, estando ainda vivo, o pai do sujeito ter entregue a herança ao filho. Não há como atestar a morte. Esta leitura dupla é um dos elementos que dão charme aos grandes poemas; mas, pode acontecer de aparecer em músicas sertanejas também.

Tô na grife, tô bonito, tô andando igual patrão.

Este outro verso citado acima serve para analisarmos agora um pouco do raso perfil do sujeito. Ter comprado um carro caro o fez sair por aí “andando igual patrão”, mas não o transformou em um. É o típico caso do emergente que, por não ter uma boa base educacional-cultural, passa a emular o estereótipo daquilo que ele acredita ser o comportamento de alguém que possua dinheiro e alta posição social. Não que alguns endinheirados não sejam realmente caricaturas de si.

Mas, em que ponto entra Machado de Assis nesta história? Vejamos: no livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” o protagonista, Brás Cubas, é o típico burguês mimado pelo pai que não vê obstáculos na vida, conseguindo tudo que quer com seu dinheiro. Foi à Europa estudar e bacharelou-se mediocremente em Direito. De volta ao Brasil, nada fez para destacar-se tendo continuado a viver à custa do pai. A crítica do livro não estava centrada no fato de Brás Cubas ter dinheiro, mas sim no fato de ele ter dinheiro e ser uma pessoa de péssimo caráter. A fortuna de sua família não fazia dele alguém melhor, com valores melhores. De uma certa forma, ele era um parasita social, que ironicamente morreu antes de criar aquela que teria sido sua única contribuição para o mundo — um milagroso emplasto. Em resumo, ele pôde viver sua vida vazia ancorado em seu dinheiro e isto o livrou, de certa forma, do feedback social.

É aí que o sujeito da letra de Munhoz & Mariano se encaixa. Após receber sua herança, a única coisa que sabemos que ele fez com o dinheiro foi comprar um carro para pegar mulheres (no plural). Porque agora já não era mais interessante pegar aquela que o esnobou no passado e pela qual ele nutria interesse; pois estando num “padrão” acima, pôde demonstrar toda sua maturidade devolvendo o mesmo comportamento, esnobando-a de volta. Aqui se faz, aqui se paga? Afinal, ele pode escolher porque “tá sobrando mulher”. E não importa se a música repete o preconceito de que mulheres só se interessam por carro e dinheiro, pois os públicos masculinos e femininos apreciam a música da mesma forma. A pergunta é: será que eles têm noção de tudo isso? Será que o público continuaria cantando se analisasse melhor o que a letra diz?

Resta ainda outra comparação com a obra de Machado. Entendo que Brás Cubas foi um personagem criado para servir de crítica a um tipo de comportamento — o burguês de vida vazia. Já a letra da música reitera os comportamentos do sujeito: gaste seu dinheiro para devolver o desprezo que alguém te deu. Seja mesquinho! E que o público cante junto aplaudindo seu capricho infantil!

Uma professora minha da graduação dizia que a poesia (ai, que heresia dizer isto aqui!) primeiro deve ser sentida e depois entendida. Às vezes nos esquecemos disso, ou de sentir ou de entender. No caso de uma música em linguagem simples, sem inversão de frases e ideias muito elaboradas, o processo de compreensão deveria ser, também, mais simples e, portanto, mais comum. Não é o que vejo. Mesmo prestando pouca atenção neste tipo de letras, algumas vezes fico em dúvida se o público tem real compreensão do que está ouvindo.

Apesar das diversas entrevistas e apresentações dos cantores em programas de rádio, TV e internet, não vejo discussões a respeito das letras dos sertanejos universitários. E quando digo que as letras dos sertanejos universitários são ruins, a réplica pronta é no sentido de a música mexer com os sentimentos do ouvinte. Machado de Assis têm textos que, quando li, me causaram diversos sentimentos. Com o tempo, estudando um pouco e percebendo vários aspectos do texto que me passaram despercebidos na primeira leitura, aprendi a gostar ainda mais dos textos, porque eu somei o “gostar” com o “conhecer”. E como diria um professor amigo meu: “A gente gosta daquilo que a gente conhece”. Por que os defensores dos sertanejos universitários não gastam algum tempo tentando conhecer mais a fundo as letras cantadas por seus ídolos e buscam retirar delas algo além do óbvio? Acho que sei a resposta, mas não direi aqui.

É verdade que eu poderia me propor a esmiuçar a letra, mas meu interesse se perderia facilmente, então deixo esta tarefa para os universitários. E o tema da música? Depois de tudo que eu já disse, parece que “pegar mulheres” é o aspecto menos interessante da letra. Sendo sincero, depois de tudo que foi dito, tenho medo. Medo de que Machado de Assis não me perdoe por ter usado seu imortal nome numa vã comparação.