Seria “Me Chame Pelo seu Nome” a versão branca, endinheirada, elitista — e igualmente gay — de “Moonlight — Sob a Luz do Luar” (2016), ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2017 e de outras duas estatuetas? Em se analisando somente o enredo da produção dirigida pelo italiano Luca Guadagnino, baseada na novela do ítalo-egípcio André Aciman, chega-se incontinente à dedução de que “Moonlight” de fato tinha muito mais bala no tambor, até por abordar uma pletora de temas espinhosos em qualquer contexto, seja num país extremamente rico e extremamente desigual (e me refiro aos Estados Unidos, onde se passa a história retratada por Barry Jenkins, frise-se), seja numa paragem idílica, parece que feita sob medida (só) para o deleite dos sentidos, como a região indeterminada de que se vale Aciman a fim de situar sua história — sabe-se apenas que fica ao norte da Itália, particularmente ensolarado no verão, terra de pouquíssimos contrastes socioeconômicos entre a população nativa. É imprescindível o complemento, uma vez que imigrantes, pelos motivos mais díspares, ocuparam toda a Europa sem nenhum planejamento ou contrapartida financeira de seus países originários, o que daria outro artigo e se prestaria com mais justeza à narrativa de “Moonlight”.
A Itália no verão se traduziria no lugar perfeito para as descobertas de um garoto endinheirado em férias, e descobertas nunca se dão sem boa dose de conflito. O professor universitário Perlman, especialista em cultura greco-romana, recebe a visita de Oliver, o estudante que se dispõe a ajudá-lo numa pesquisa interpretado por Armie Hammer. Oliver, bonito, sensível e noivo de uma moça, logo desperta o interesse de Elio, filho do professor Perlman, instantânea e assustadoramente magnetizado pela figura apolínea do discípulo do pai. Ao espectador, é sugerida a ideia de que Elio fora sempre um homossexual enrustido, sabe-se lá por quê — ou melhor, sabe-se perfeitamente —, que passara toda a sua ainda curta vida esperando por aquele instante, a visão reveladora de Oliver diante de si, o cheiro de seus cabelos rescendendo em toda parte, a tepidez do hálito do convidado se chocando contra sua boca. Tivesse Elio uns anos a menos, decerto seria acometido de uma espécie de transe, tão violento e descontrolado que excede os limites da psique e se derrama sobre o corpo, algo com a força de um ataque catatônico, a exemplo do que se passa em analepse com Salvador Mallo, protagonista de “Dor e Glória” (2019), vivido na fase adulta por Antonio Banderas no filme do espanhol Pedro Almodóvar. O grande enrosco do trabalho de Guadagnino fora não exatamente com a crítica, tampouco com a audiência, mas com gente pronta a se arvorar em palmatória do mundo, ainda que incapaz de notar a sujeira nos próprios olhos: Elio era menor de idade e teria sido vítima de aliciamento pelo coitado do professor Perlman a fim de servir de passatempo a Oliver, dominado pelo tédio. Tudo delírio, psicopatia, inveja. Perlman é um homem sensível, culto e, sobretudo, perspicaz, que certamente já se inteirara de há muito da condição do filho, sem a necessidade de consultar quem quer que fosse, nem a mulher, esposa devotada e mãe atenta. Talvez haja se dado com o mestre a iluminação que agraciara o filho, de outra natureza, claro. A chegada de Oliver servira para dar a ele a parcela de certeza que lhe faltava acerca de como Elio enxergava a vida e se via a si mesmo no mundo. O moço loiro balançava as estruturas daquela família, sem derrubá-las, se prestando a remover uma ou outra pedra solta e dar ao ambiente uma cara mais genuína, mais verdadeira.
O fato da trama se desenrolar no já distante 1983 não diz nada sobre a possível rejeição da família de Elio a Oliver, dada a aura de liberdade em seu estado mais sofisticado que paira ali. Esse coming of age, esse registro do amadurecimento de Elio, é o que predomina, com Timothée Chalamet forjando o enredo a seu gosto. Muito mais que um menino bonito, como deixa claro sua filmografia, ao longo de mais de duas dezenas de trabalhos na tela grande, o franco-americano sempre se apresentou de maneira irreprochável, em papéis que ressaltam sua estampa aristocrática, embora em “Me Chame Pelo seu Nome” o lado mais, digamos, povão do personagem sobressaia. De forma alguma se pode atribuir à produção o rótulo de filme gay, queer drama, ou alguma nomenclatura que se lhe assemelhe: aqui, é mesmo a suavidade o que prevalece. Sem julgamentos, sem neuroses, só para variar. Ninguém se atribui o direito de reprimir quem quer seja nesse Éden pagão em que beleza estética e refinamento intelectual vão para a cama sem nenhum pudor. A narrativa pode até parecer meio arrastada em certos momentos, mas a beleza do enredo — e das paisagens — sufocam o bocejo do espectador, cujo queixo pode cair sem prévio aviso.
A Grécia Antiga provavelmente foi a única civilização na brevíssima história da humanidade tal como a conhecemos em que a relação entre dois homens sempre foi, além de digna de todo o respeito, incentivada. Conscientemente ou não, o roteirista James Ivory, partiu desse argumento — e aqui tomamos por análise precisamente o comportamento de Perlman quanto a seu discípulo. O professor não seria nenhum lunático se julgasse que Oliver abusara de sua hospitalidade ao vilipendiar a fidúcia que lhe fora devotada, cometendo a maior falta que poderia. Mas Ivory — aos 89 anos, a pessoa mais velha a ganhar um Oscar, o de Melhor Roteiro Adaptado, com toda a justiça, — sequer insinua tal disparate e segue o que se lê em Aciman até o desfecho do filme, igualmente genial ao transpor a história para os lendários anos 1980, nem tão libertários — e loucos — como os 1970 e os 1960 que lhe serviram de lição, mas longe do maremoto de caretice cretina que se desdobrara com a subida ao poder do canastrão Ronald Reagan (1911-2004), nos Estados Unidos, e ainda antes de Margaret Thatcher (1925-2013) — sem dúvida, a melhor primeira-ministra que a Inglaterra já teve depois de Winston Churchill (1874-1965) — se reeleger, afirmar sua hegemonia e estender seus tentáculos sobre todo o Velho Mundo a partir do número 10 de Downing Street. Um mundo em que a sexualidade — e a homossexualidade, sobretudo a masculina — era muito mais vigorosa e muito mais ostensiva, reputação que a aids tratou de reduzir a pó em menos de uma década.
Todos sobrevivem em “Me Chame Pelo seu Nome”, Elio e Oliver não se tornam um casal, a vida segue e a carreira de Chalamet vai de vento em popa — sorte que não alcança Hammer, tragado por um cabeludíssimo escândalo na vida pessoal não muito depois do lançamento. O mundo, passados quarenta anos, é só uma lívida memória do que foi. Ou uma projeção tetricamente gorada do que deveria ser.
Filme: Me Chame Pelo seu Nome
Direção: Luca Guadagnino
Ano: 2017
Gênero: Romance/Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10