Cyro dos Anjos, o escritor mais injustiçado da literatura brasileira Ilustração / Revista Bula

Cyro dos Anjos, o escritor mais injustiçado da literatura brasileira

Comecei a me interessar por Cyro dos Anjos ao ler o blog do jornalista Sergio Rodrigues, hospedado na Revista Veja, em algum momento das décadas passadas. Sergio publicava uma série chamada “começos inesquecíveis” e, ali, publicou um trecho de “O Amanuense Belmiro”, que eu só conhecia por ter feito parte das leituras obrigatórias do ensino médio.

A obra de Cyro dos Anjos, embora às vezes subvalorizada, se destaca pela maneira singular com a qual ele capta a essência de Minas Gerais, especialmente em seu mais notável livro, “O Amanuense Belmiro”. Apesar de muitas vezes estar à sombra de seus contemporâneos, Cyro demonstra uma perspicácia literária inquestionável. Com seu uso inigualável da linguagem e poder de expressão, ele cria uma vívida representação da vida em Belo Horizonte nos anos 1940.

Compartilhando a era literária com grandes nomes como Carlos Drummond de Andrade, Godofredo Rangel, João Afonso de Guimarães e Eduardo Frieiro, Cyro dos Anjos contribuiu para moldar um estilo literário marcado por sua elegância e precisão. Contudo, ele fez mais do que isso: demonstrou um interesse particular na meticulosa construção de seus personagens e tramas, possuindo uma habilidade única de converter o banal e cotidiano em uma expressão poética da complexidade e diversidade da experiência humana.

Cyro dos Anjos
O Amanuense Belmiro ( Biblioteca Azul,  240 páginas)

Na Universidade de Brasília, Cyro teve um papel fundamental incentivando seus alunos a refinar sua escrita e buscar a excelência literária. Em suas aulas, incutia um profundo respeito pela arte da escrita, tratando-a de maneira equivalente às artes artesanais medievais. Seu estilo de escrita, entrelaçado com uma perspectiva mítica e enraizada na realidade, produziu um rico retrato cultural de Belo Horizonte e, por que não dizer, do Brasil, repleto de simbolismo e profundidade.

Carlos Drummond de Andrade, o ícone da poesia, foi quem encorajou Cyro a continuar escrevendo “O Amanuense Belmiro”. Drummond acreditava que o livro estabeleceria uma nova direção na prosa literária brasileira. Como o tempo provou, ele estava absolutamente correto. O romance propicia uma reflexão comovente e intensa sobre a intersecção entre vida e literatura. Cheio de uma melancolia articulada e de um humor sutil, mas incisivo, o livro questiona o papel do intelectual na sociedade. A história acompanha Belmiro, um simples funcionário público, cuja rotina de trabalho e interações sociais se tornam a matéria-prima do diário que ele começa a escrever. Nas mãos de Cyro, a vida corriqueira do protagonista transforma-se em uma profunda investigação sobre o homem. A metamorfose do cotidiano é realizada de maneira tão delicada que convida o leitor a ver além do aparentemente trivial, desvendando as camadas mais profundas da experiência humana.

No cerne da obra, Belmiro, retratado por meio de seu diário, reflete as lutas internas e dilemas com os quais todos nós, seres humanos, conseguimos nos identificar. A saudade de um passado que não volta, a tensão entre a imaginação e a memória, e a incessante busca por sentido na vida. Envolvidos nesses temas, os leitores são introduzidos a um sentido profundo de melancolia e reflexão.

Nesse cenário, Cyro dos Anjos lança luz sobre um novo tipo de protagonista na literatura brasileira: Belmiro — um anti-herói introspectivo que, apesar de sua aparente simplicidade, consegue expressar a complexa rede que compõe a existência.

Belmiro não está sozinho em sua jornada. Ele é acompanhado por amigos como Jandira, Silviano, Redelvim, Florêncio, Glicério e Carmélia, que ele carinhosamente chama de donzela Arabela. Por meio destes personagens, Cyro dos Anjos reflete os desejos, temores, alegrias, fracassos e vitórias que são um espelho do universo emocional comum a todos nós.

Ao explorar a profundidade e complexidade presentes até mesmo nos momentos mais cotidianos de nossa jornada, Cyro nos convida a olhar para nossas próprias existências com maior consideração e empatia. Assim, sua obra não é apenas uma representação da vida, mas também uma chamada para uma reflexão mais profunda sobre o que significa ser humano.

Ou como ele mesmo disse:

“Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse a solução geral. Éramos quatro ou cinco, em torno de pequena mesa de ferro, no bar do Parque. Alegre véspera de Natal! As mulatas iam e vinham, com requebros, sorrindo dengosamente para os soldados do Regimento de Cavalaria. No caramanchão, outras dançavam maxixe com pretos reforçados, enquanto um cabra gordo, de melenas, fazia a vitrola funcionar”.