Filme da Netflix pegará seu cérebro emprestado e te deixará com o coração na boca e os olhos pegando fogo Skip Bolen / Netflix

Filme da Netflix pegará seu cérebro emprestado e te deixará com o coração na boca e os olhos pegando fogo

Misturado às estrelas mais inalcançáveis, em alguma parte de um universo que se dilata e se contrai em si mesmo, defendendo-se de qualquer ciência que se faça conhecer, orbita um corpo celeste que abriga as tantas vontades humanas. Nesse lugar, as ideias mais delirantes; os desejos, mais e mais imperiosos; necessidades as mais íntimas; tantas loucas expectativas acerca da vida, tudo quanto se relaciona ao homem e suas doidas aspirações se revela, permitindo que desabroche uma natureza que ele mesmo nunca conheceu. Evidentemente, todos esses sempre foram elementos da sua própria constituição mais secreta, ainda que ele próprio nunca o vá admitir. Virtudes e defeitos — principalmente defeitos — definem o quão resoluto pode ser alguém cujo grande objetivo na vida é escalar sem trégua a muralha de sonhos mais ocultos, todos ligados entre si e afinados, mirando um único propósito. Essa ânsia por sair de um espaço que parece menor aos olhos do mundo e atingir o topo, custe o que custar, passa pela cabeça de todo indivíduo; entretanto, só aqueles verdadeiramente obcecados, seduzidos de morte pelos falsos encantos da força e do poder, são capazes de elevar esse projeto tão etéreo à condição de realidade, perniciosamente admirável.

É difícil conservar a mente sã diante de tanta preocupação, tanta ansiedade, tanto conflito. Nos últimos setenta anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o homem ficou viciado na comodidade venenosa de habitar os grandes centros, cada vez mais absorto pelo trabalho e, por conseguinte, cada vez mais enfastiado, desapontado, infeliz. E vício é mesmo a palavra exata para descrever a encruzilhada dos sentimentos humanas do ponto de vista biológico. O homem não suporta ficar indisposto, refém das descompensações químicas que ele mesmo fomenta. Ludibriado pela inadequação que compõe sua essência, tenta combater o mal com um mal ainda maior, fazendo com que recomece o ciclo dos tormentos que não remedeia nem com o socorro da medicina mais avançada. Algumas das questões que intercalam o consumo de drogas e a consequente pletora de desdobramentos que advêm do que deveria ser apenas uma escolha individual são o foco de Ariel Schulman e Henry Joost em “Power”, alegoria sobre o regozijo nos paraísos artificiais em que se refugiam as almas sofridas e o que tal comportamento implica no mundo real e pragmático.

Mattson Tomlin escreve sobre um entorpecente que decerto seria motivo de êxtase para muita gente, em muitos sentidos. Numa Nova Orleans dominada pelo tráfico, começa a circular uma substância que torna seus cidadãos mais resilientes e mesmo poderosos, capazes de buscar em no mais fundo de si a força de que precisam para superar as dificuldades do cotidiano, as ordinárias e as que ficam à espreita, aguardando uma oportunidade de atacar. O roteirista elabora esse argumento de modo a inserir a sua abordagem acerca da situação de abandono e degenerescência social da cidade após a passagem do furacão Katrina, entre 23 e 31 de agosto de 2005. Schulman e Joost aproveitam a deixa para apresentar Frank, o policial durão, idealista, mas um tanto frustrado de Joseph Gordon-Levitt, correndo atrás de um criminoso que literalmente se funde aos ambientes por onde passa, praticando o mimetismo de que a droga o guarnece. A fotografia de Michael Simmonds aliada à edição de Jeff McEvoy confere a essas passagens realismo que chega a surpreender no que até o momento parecia um filme de ação apenas regular.

A parceria de Gordon-Levitt com Jamie Foxx demora a engatar, mas uma vez que se dá tal mágica, a história de fato ganha outra cor. Na pele de Art, um megatraficante entre arrependido e cínico, Foxx encarna os trechos mais perturbadores e comoventes da narrativa, em especial quando se desvenda o segredo de polichinelo em torno de sua figura melancólica. A participação de Dominique Fishback como Robin Railey, uma garota-problema que aspira à carreira de rapper, acrescenta leveza, sem prejuízo da dramaticidade.


Filme: Power
Direção: Ariel Schulman e Henry Joost
Ano: 2020
Gêneros: Ficção científica/Crime/Ação
Nota: 8/10