De tirar o fôlego, filme com Denzel Washington, na Netflix, leva o espectador para dentro dele e o transforma em personagem Glen Wilson / Sony Pictures

De tirar o fôlego, filme com Denzel Washington, na Netflix, leva o espectador para dentro dele e o transforma em personagem

Cedo ou tarde, todos precisamos de advogados, e a piada que desde sempre corre à boca miúda pelas ruas e palácios reza que conhecer um advogado pode nos salvar de apuros de cuja existência jamais suspeitaríamos. A liberdade é a grande fortuna de que um homem pode gozar — às vezes a única —, e há ocasiões e cenários em que mantê-la é especialmente difícil, tamanho o peso das adversidades que cercam determinadas pessoas. Obrigar-se a viver de maneira digna talvez seja o pressuposto mais básico a nortear a vida do homem, a qualquer época ou a despeito do lugar do mundo em que se encontre, porém a existência humana define-se, entre tantas outras lamentáveis evidências, por ter forçada a se sujeitar a reviravoltas as mais impensadas, muitas delas, talvez a maioria, impostas como que por uma legião daqueles espíritos trevosos que rondam o gênero humano do berço ao túmulo. Livrar-se da influência do mal, sua banalidade e sua sofisticação, é uma façanha improvável diante de inimigos dedicados, que não se dão por vencidos até que possam recolher do chão os restos da honra de um infeliz qualquer.

A vida depois de episódios que tais revela-se ainda mais árdua uma vez que o homem desonrado claudica, como se lhe tivessem extraído boa medida de sua força vital. Começam a se suceder acontecimentos tanto mais perigosos, todos unidos entre si por uma natureza canhestra, deixando claro que alguma coisa se partiu irremediavelmente na alma de alguém. Como a lógica é uma inimiga figadal do estar humano no mundo, o homem, em vez de procurar os caminhos que sabidamente vão devolvê-lo à estrada reta, dobra apostas equivocadas e se excede; em nome do direito à liberdade — que como todo direito não é absoluto, mas relativo, ou seja, só vale se comparado ao que podem representar as circunstâncias que o envolvem e, o principal, se não extrapola seus limites e degringola na conspurcação das liberdades alheias —, alguns indivíduos ferem os princípios fundantes da boa convivência entre gente de diferentes origens, credos, estratos sociais, ideologias. Esse desprezo pela observância do bom senso faz acender a luz amarela da falta de decoro, de civilidade, de humanidade mesmo, sendo preciso, em casos extremos, que o Estado intervenha.

O personagem-título de “Roman J. Israel, Esq.” (2017), de Dan Gilroy, em que pesem as aparências, passa longe do homem cordial descrito pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em “Raízes do Brasil” (1936) ou, para ficar num chavão mais geograficamente apropriado, do americano tranquilo, do romance homônimo do britânico Graham Greene (1904-1991). Israel é um homem que se destaca precisamente pela coragem de se insurgir contra o dito sistema, sentindo todos os efeitos desagradáveis de obedecer apenas a sua própria consciência. Embalado sob a forma de um professor aloprado como o de Eddie Murphy no filme de mesmo nome levado à tela em 1996 por Tom Shadyac, remake do ótimo trabalho de Jerry Lewis no longa estrelado e dirigido por ele em 1963, Denzel Washington personifica as conquistas e as ilusões de um sujeito obcecado com seu trabalho, e nem poderia ser muito diferente. No ramo do direito criminal há cerca de quatro décadas, o anti-herói do roteiro de Gilroy especializou-se em defender causas em que os querelantes são cidadãos pobres e pretos sem dinheiro, mas com muita gana de investir no que acreditam que seja justo. O diretor-roteirista inclui diálogos pontuais e numerosos, repletos de alusões jurídico-filosóficas sobre a importância do direito (e em particular dos advogados) na história das civilizações, premissas que só mesmo o talento de Washington poderia dizer sequências à frente, quando se dá a guinada da história. No momento em que o escritório em que fez a carreira, muito mais um centro de filantropia celebrizado pelo misantropo Israel, não segura mais as pontas e abre falência, ele passa a trabalhar para o multimilionário George Pierce, de Colin Farrell, até que se interpõe entre os dois o dilema ético que dá azo ao filme, resolvido pelo veterano, depois de alguma hesitação, de uma forma quase insana, mormente em dias em que se mata e se morre por um punhado de dólares.


Filme: Roman J. Israel, Esq.
Direção: Dan Gilroy
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10