Os homens — estes, sim — deveriam lamber os seus cães

Os homens — estes, sim — deveriam lamber os seus cães

Para o meu cão, deixo o mundo: osso duro de roer. Para o mundo-cão, deixo um esqueleto no armário: resquícios do poeta que minguou em mim.

Para os grande cânions, deixo pequenas demonstrações de desespero: os meus latidos de inconformismo a ecoarem, a ribombarem contra as rochas e confundirem os ecos.

Para ondas e correntes, deixo as minhas braçadas rio acima.

Para o jardim de inverno, deixo os tais sonhos de uma noite de verão. Vocês verão — prezados lírios — que, de tão simplórios, até poderiam ser chamados delírios, ao invés de sonhos.

Para o pó da estrada, deixo mais que as pegadas. Deixo histórias para serem contadas sem muito entusiasmo, mas também sem histeria, pois de exageros já basta ter nascido.

Para a lua cheia, deixo a denúncia vazia de que São Jorge caiu do cavalo e não virá essa noite para o jantar, a fim de matar dragões. Por outro lado, aquele faminto séquito de poetas permanecerá sentado nos banco das praças desta cidade, colocando as suas vidas em risco (a violência urbana está mesmo de matar), ansiosos por inspirações incríveis dignas de uma noite enluarada.

Para os céticos convictos — parceiros de muito pragmatismo e solidão nas confraternizações familiares — deixo amuletos em prol da assepsia de demônios. Mas que não deem a eles o menor crédito, nem mesmo a este testamento, que foi escrito sob a égide de uma profunda, lamentável condição humana.

Para as mulheres que amei, deixo tudo aí como está: gonococos, lábios que beijei, doces recordações e um ligeiro grau de indelicadeza ao dizer adeus.

Para os cães emocionados que lambem os seus donos como se não houvesse amanhã, deixo a minha admiração irrestrita. Os homens é que deveriam lambê-los.

Para os melhores amigos deixo meus piores defeitos. E vamos ver mesmo quem é que vai aguentar.

Para os meus desafetos, deixo uma distância segura que nos conservará diferentes e felizes.

Para o biógrafo decadente, deixo pistas falsificadas que o conduzirão a um ser humano probo e admirável que, certamente, não serei eu, mas um personagem fotogênico que merecerá tese, discurso, inclusive um busto na praça, e toda aquela gama de excrementos que um bando de pombos incontinentes possa evacuar.

Por sinal, deixo às pombas da paz as minhas ameaças de guerras interiores.

Para os soldados em campo, deixo as minas dos meus subterrâneos, uma explosão de sentimentos que fará aquela famosa Rosa de Hiroshima parecer uma reles erva daninha no canteiro.

Para o governo local, deixo os neurônios desgovernados que furtei de um poema.

Para os senhores da Receita, deixo os porcos, as pérolas, todas as minhas economias, inclusive os beijos e afagos que soneguei. Multem-me, arrestem os meus bens, mas — para o seu próprio bem — não repitam os meus equívocos!

Para os exorcistas, deixo as portas destrancadas. Não haverá resistência.

Para os homens de fé, deixo o crucifixo de bronze que usava para coçar as costas, e velas de sete dias para assar marshmallows.

Para doutores da alma, deixo picanhas no freezer.

Para Deus, o meu perdão.