Hermann Hesse: o guru dos hippies

A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta dos Vosgues.

Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século 19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a Inglaterra.

Durante quase toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de comércio — com estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.

O Sul da Alemanha, a partir do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.

Foi neste ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20. Perscrutar a vida desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando a si mesmo.

Hermann Hesse, aos 20 anos
Hermann Hesse, aos 20 anos

Hermann Hesse não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe fora imposta pelo ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a extremada religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários e na publicação de literatura religiosa.

Portanto, o jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia nada além do sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.

Hermann Hesse foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas, anseios e aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.

Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.

Sua vida é bem documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os Hesse, como da materna, os Gundert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo e qualquer papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.

O avô paterno, dr. Carl Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado, em Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma ampla autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular correspondência até sua morte.

O avô materno, dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus estudos preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do século 11 e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor Eduard Mörike.

O dr. Gundert era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua formação em Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e malaiala. Terminados os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu para Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área de seu interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala, inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se, na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente, mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era rigorosa e intransigente.

Gundert regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa. Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma biografia sobre o sogro.

Johannes Hesse (1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô materno alemão casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante nacionalismos e limites fronteiriços”.

Em 1919, ao decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura, pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis vigentes da época, como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado com uma mulher nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890 e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.

Johannes Hesse, pai de Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em anotar e registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo; ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam comunicar-se em inglês.

Hermann Hesse conheceu muito bem o avô materno, Hermann Gundert, com o qual manteve estreito contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto autobiográfico “A Meninice de um Mágico”, Hermann Hesse fala com sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o idoso, respeitado, po­deroso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e poderes… sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês, bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.

Diante desse manancial cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria seguir”. Uma das coisas que Hermann admirava em seu pai, que falava várias línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.

Os primeiros intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros quatro anos de ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Gie­benrath, em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.

Em 1891, o pai matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o avô materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der Stadt, pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).

“Serei escritor ou nada”

Em Maulbronn, o seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele mesmo ensaiava com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta semelhança eu tinha com o meu pai”. Depois de sete meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado numa clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou apenas três dias.

Regressou à casa dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava relógios para torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio. Durante esse período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos para emigrar para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.

O relacionamento com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já publicara textos, comentários e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a mãe.

A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance “Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.

Às margens do lago, a criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906 publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin. Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.

Em 1911 Hesse parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais idolatravam.

Enquanto isso Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não ser capaz de lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços autobiográficos incluiu em sua obra.

No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.

Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.

O guru dos hippies

Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece até 1931.

Ainda em 1919 Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.

Nesse entretempo Hesse publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade particular.

Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.

Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.

Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de Hermann Hesse tornaram-se su­cesso também nos Estados Unidos quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.

Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.

Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.

Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte de seu acervo.

A única arma que Hesse usou foi a caneta

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Estátua de Hermann Hesse em Calw, Alemanha

É oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.

Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.

Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.

Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Montagnola, aos 75 anos. Transcorridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hesse aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.