Obra-prima ignorada por crítica e público, é um dos melhores filmes da história da Netflix Emily V. Aragones / Netflix

Obra-prima ignorada por crítica e público, é um dos melhores filmes da história da Netflix

O argumento central do filme “Identidade”, de Rebecca Hall, parece simples: Irene, interpretada por Tessa Thompson, e Clare, vivida por Ruth Negga, voltam a se encontrar depois de anos sem se verem. À medida que retomam o contato, ambas compartilham suas apreensões uma com a outra, ansiando por exorcizar fantasmas que insistem em atormentá-las.

Irene e Clare são mulheres negras de pele clara, ou seja, esteticamente brancas — mas apenas sob a perspectiva visual. A ideia de que alguém de aparência branca possa ser, na verdade, classificado como negro é confusa no Brasil, o que se explica pelo seu passado escravagista que sacramentou o negro como um indivíduo de segunda classe, mas não apenas por isso. Nos Estados Unidos, a abordagem do tema do ponto de vista genético, que prega que alguém que tenha uma gota de sangue negro nas veias é, consequentemente, negro, acabou, ainda que paradoxalmente, estimulando a luta dos cidadãos não-brancos pelos seus direitos.

A população outrora chamada de cor nos Estados Unidos tem sofrido todo tipo de preconceito desde muito antes de 1929, quando se passa a trama, baseada no livro homônimo da escritora chicaguense Nella Larsen (1891-1964), que se radicou em Nova York. Mais de sessenta anos depois da aprovação da 13ª Emenda, em 6 de dezembro de 1865, justamente nos estertores da Guerra Civil Americana, em que o Sul escravagista e o Norte, a favor da abolição, se enfrentaram, a América ainda sofria com a segregação racial entre negros e brancos, e 40 anos depois, continuava a padecer desse mal, uma vez que os negros encheram as ruas do país clamando por igualdade, um pleito que, lamentavelmente, culminou no covarde assassinato do reverendo Martin Luther King (1929-1968), líder que pregava uma reação pacífica ao racismo, institucional, estrutural ou simplesmente ignorante. Em 2021, quase um século depois da publicação de “Identidade”, a questão racial ainda assombra a população americana, sob a forma de ataques de ódio de policiais caucasianos contra afro-americanos pobres, que mesmo que pontuais, denotam, em primeiro lugar, o despreparo das forças de segurança, e o preconceito velado que se cristalizou em determinadas esferas da sociedade americana.

As protagonistas do longa, numa magnífica estreia de Hall como diretora, são antagônicas, mas se complementam. Apesar de clara, Irene, numa acepção do racismo internalizado de que é vítima, conhece o seu lugar e não abusa, não quer confusão. Clare — uma brincadeira semântica de Larsen — parece muito satisfeita com seu cabelo platinado, que a fotografia em preto e branco do filme faz questão de enaltecer, e adquiriu ao longo da vida um refinamento impensável a muitas moças brancas e impossível a todas as negras (talvez tenha faltado uma providencial rinoplastia, a fim de deixar seu nariz tão fino quanto o de uma genuína princesa escandinava, papel que emula para sua vida, apesar da cirurgia plástica estar ainda em seus primórdios nos anos 1920. Ironicamente, o Brasil, para onde, por sua vez, Irene e o marido, Brian, querem se mudar para fugir da discriminação racial [se eles soubessem…], tornou-se campeão mundial na modalidade). Tanto empenho lhe garante o casamento com John, um homem de ascendência nórdica — da mesma forma como fez a mãe da romancista, cujo segundo marido, Peter, de quem toma o sobrenome por empréstimo, era dinamarquês —, que não desconfia da verdadeira origem de Clare, ou assim parece. A esse propósito, ainda na primeira metade do enredo, quando as duas mulheres começam a se tornar próximas outra vez, Clare insinua que John pode, sim, ter suspeitado de sua “vergonha”, mas por orgulho viril, não deu o braço a torcer. Premissa que, se vai ver, não se sustenta.

“Identidade” é, sem trocadilhos, um projeto de identificação para Rebecca Hall. A diretora confessou que seu interesse pela obra de Larsen surgiu da descoberta de que ela própria tinha um avô negro que renegara seu passado. A elaboração do roteiro foi terapêutica no sentido de ajudá-la a digerir um dos opróbrios escondidos que toda família tem, o que dá à produção a aura de autobiografia, de um diário íntimo que vai se preenchendo à medida que Hall supera o incômodo inicial com os esqueletos ocultos em seu armário, revelando-se uma realizadora corajosa, cuja ousadia a leva a entregar um filme esteticamente irretocável. A delicadeza da narrativa é alimentada por essa beleza, compondo um trabalho como poucos na história recente do cinema. Pode ter se tornado um tipo de protocolo a ausência de cores ao abordar temas sensíveis, até dolorosos, como fez Alfonso Cuáron com a doçura que lhe é peculiar em “Roma” (2018), mas o resultado compensa qualquer ranzinzice intelectual.

A trilha sonora de Devonté Hynes a um piano executado com destreza exalta o quanto há de Clare em Irene e vice-versa, duas figuras frágeis, maltratadas pelo tempo em que viveram, cada uma à sua maneira, que acabam se partindo, uma delas prematuramente, e para sempre. “Identidade” é o registro mais perfeito de uma era que já deveria estar morta. Todo cuidado é sempre pouco.


Filme: Identidade
Direção: Rebecca Hall
Ano: 2021
Gêneros: Drama
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.