O Vietnã está passando por um surto de sequestros inexplicáveis de crianças, deixando pais e mães inconsoláveis sem saber a quem recorrer, mas firmes em seu propósito de justiça ou reparação. Hai Phuong, a protagonista do surpreendente “Fúria Feminina”, vivencia esse drama que aborda um grave e muito específico problema social sob uma perspectiva nada óbvia, revelando novos aspectos da questão. O roteiro do diretor Le-Van Kiet privilegia a ação, sem dúvida, mas não se esquiva das discussões que se acumulam ao longo da projeção de mais de uma hora e meia de seu longa-metragem, o que deixa claro que seu país está a todo vapor para se tornar uma nova referência de bom cinema na Ásia, cuja hegemonia já foi do Japão e hoje está nas mãos da onipresente e genial Coreia do Sul com seus filmes sobre rigorosamente tudo, desde dramas familiares característicos até as mais impensáveis histórias de zumbis.
Kiet tem conquistado um destaque razoável ao trazer para a tela dramas policiais repletos de sequências de artes marciais que, claro, os asiáticos dominam como ninguém. “Fúria Feminina”, lançado em 2019, perpetua a tendência há muito vista nessas produções — um cenário de crime, neste caso, sequestro; um herói que enfrenta perigos sobre-humanos para combatê-lo, neste caso, uma heroína; e as consequências óbvias (ou não) de tal conduta, direcionamento totalmente alinhado com a inclinação do próprio Kiet em valorizar o tema de gênero em seus trabalhos. Essa tarefa é facilitada pelo talento brilhante de Veronica Ngo, que se destacou em “Star Wars: Os Últimos Jedi” (2017), dirigido por Rian Johnson. Na trama vietnamita, Ngo assume toda a carga dramática que o diretor espera dela, especialmente numa narrativa aparentemente dissociada de qualquer possível elucubração filosófica. Com expressões faciais intencionalmente endurecidas, uma vez que sua figura é suave por natureza, Hai Phuong destaca-se pelos movimentos quase acrobáticos que se tornam sua marca em cena.
Assistir a “Fúria Feminina” fora do cinema é quase um sacrilégio, mas pior é perder a experiência de testemunhar as exuberantes cores primárias e o neon que explodem na tela, realçando as belezas naturais do Vietnã. O filme começa em Can Tho, mostrando a personagem central expulsando os moradores que não pagam as dívidas que contraíram com o agiota que a contratou. É com esse dinheiro, maldito aos olhos de sua filha, Mai, interpretada por Cat Vi, que ela sustenta a si e à menina, não sem passar por algumas necessidades. Sem família e criando Mai sozinha, Hai Phuong é vista como uma pária na vila em que vivem. O desaparecimento de Mai está estritamente relacionado a esse trabalho inglório e meio desonroso, e Kiet mostra habilidade e sobriedade ao expor a possibilidade de a garota ter sido raptada por traficantes de órgãos humanos. A personagem de Ngo parte numa caçada de moto aos possíveis criminosos ao longo do rio Mekong. Como não consegue resgatar a filha, Hai Phuong viaja na caçamba de um caminhão para Ho Chi Minh, onde acredita que Mai foi levada. Uma jornada de sofrimento físico, mas sobretudo espiritual, na qual terá de pacificar seus demônios interiores se quiser ter a filha de volta.
O argumento da mãe heroína, disposta a desafiar qualquer um que se oponha a ela, não é novo, é claro, tampouco o da mulher sozinha, que se encontra em uma situação complicada e não pode contar com a ajuda de ninguém. No comovente “Relâmpago” (1952), Mikio Naruse (1905-1969) já discorria sobre as agruras de uma mulher ainda jovem e o desafio de se sustentar e se proteger sozinha numa sociedade hostil e opressiva, como a de hoje, mas que reunia em torno de si, de forma ainda mais concentrada, os preconceitos vigentes desde que o mundo é mundo em relação à mulher que ousa levar a vida do jeito que consegue. No caso do filme de Naruse, a protagonista nem ansiava por ser tão revolucionária assim, mas acabou sendo forçada a uma vida de celibato e castidade artificiais porque o amor como ela concebia não se concretizou. Hai Phuong, por outro lado, teve a oportunidade de experimentar o sentimento amoroso, a paixão pelo homem que também a desejava, mas foi igualmente excluída da felicidade ao descobrir-se enganada da maneira mais desleal. Como teve que desafiar a autoridade paterna — uma das bases da milenar tradição oriental — para ficar com o homem que a desapontou irreversivelmente, não teve mais qualquer chance de retorno.
Veronica Ngo tem o dom de superar as mínimas fraquezas de “Fúria Feminina”. Sua atuação eminentemente estoica, de uma autêntica mártir, bem ao estilo dos povos asiáticos, aliada à incomparável fotografia de Christopher Morgan Schmidt e, claro, às coreografias de Samuel Kefi Abrikh, transformam o filme de Le-Van Kiet em um presente, tanto mais prazeroso por ser algo inesperado.
Filme: Fúria Feminina
Direção: Le-Van Kiet
Ano: 2019
Gênero: Artes Marciais/Ação
Nota: 9/10