Famílias são compostas de universos paralelos que podem ou não integram-se ao sabor das conveniências, sujeitas a todas as intempéries que o passar dos anos pode trazer, e por essa razão, particularmente propensas a choques. Os vários sentimentos, divergentes, mas complementares, que marcam a vida dos infaustos personagens de “Lendas da Paixão”, tornam-se indomavelmente destrutivos à medida que se tem cada vez mais explícita a certeza de que não estão a salvo da imoderação de sua própria natureza, e reagem a essa torturante evidência com toda a dissimulação de que são capazes, manifestando um desprezo cabal uns pelos outros.
Edward Zwick confere a seu filme a cadência de uma saga ambivalente, que começa assaz despretensiosa, mas não tarda a revelar seus aspectos idiossincrásicos e mesmo labirínticos num faroeste como poucos. One Stab, o velho índio que narra a história interpretado por Gordon Tootoosis (1941-2011), parece um espírito das civilizações ancestrais, sem que se saiba se ainda está neste mundo, ainda que o mais razoável seja admitir que deixa-se levar pelo rio que corta um bosque isolado de Montana, no oeste dos Estados Unidos, com seu relevo singular abrangendo das Montanhas Rochosas às Grandes Planícies. Aos poucos, o tom lúgubre de One Stab ganha contornos mais firmes quando o personagem menciona homens tão corajosos que ou enlouquecem ou são cobertos pelo véu da mitologia: é o caso de Tristan Ludlow, o anti-herói de Brad Pitt, cuja mãe, Isabel, quase morrera ao dar-lhe a luz, no mês em que as folhas principiam a cair de um ano perdido na lembrança. A veia de bicho desgarrado de Tristan, vivido na primeira fase por Eric Johnson, decerto nasceu do sangue materno, uma vez que Isabel não suporta a vida rural e vai-se embora, permanecendo, ela, sim, como um fantasma na vida dos Ludlow, mesmo que William, o patriarca, dê a impressão de esquecê-la depressa. Enquanto as aparições de Christina Pickles restringem-se ao inevitável, e a entrada em cena de sua personagem seja muitas vezes só auditiva, contando ao público que diz a William nas missivas que endereça ao marido, Anthony Hopkins toma conta do enredo — desmedidamente até — na pele do rancheiro de excelentes modos, bigode encerado, vestido à europeia, um autêntico lord atolado pelo deserto emocional e de ideias que é a Montana do começo do século 20. No primeiro segmento de “Lendas da Paixão”, Hopkins oferece a audiência o espetáculo de sempre, apostando corretamente no estoicismo do velho Ludlow, que suporta a distância da mulher sem amantes ou vícios, dedicando-se integralmente a suas terras e amando somente os filhos, em especial, Tristan, o que aponta exatamente qual o ponto de vista que o roteiro de Susan Shilliday e William D. Wittliff quer privilegiar.
A eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) obriga que os três varões de William alistem-se, e ficam na herdade o patriarca e Susannah Finncannon, a mocinha meio insossa de Julia Ormond, que viera para se casar com Samuel, o caçula vivido por Henry Thomas, que morre em combate. Se William havia pedido baixa do exército por não aguentar mais conflitos de que não escolhera tomar parte, o veterano terá de mediar uma insólita disputa amorosa entre Susannah, Tristan e o primogênito Alfred, de Aidan Quinn, de quem efetivamente torna-se esposa, malgrado nunca tenha conseguido esconder a irresistível atração pelo filho do meio — que não nascera para unir-se em matrimônio a ninguém, se não à vida aventureira e à pólvora. Essa é sua redenção e sua desdita, de que os outros conseguem escapar, bem chamuscados.
Filme: Lendas da Paixão
Direção: Edward Zwick
Ano: 1994
Gêneros: Drama/Guerra
Nota: 9/10