Completamente divertido, filme da Netflix fará você esquecer todos os últimos lançamentos da Marvel Divulgação / Netflix

Completamente divertido, filme da Netflix fará você esquecer todos os últimos lançamentos da Marvel

O cinema russo é uma das manifestações artísticas mais antigas do mundo, e talvez uma das mais paradoxais. O primeiro filme russo conhecido não foi exatamente um filme, mas uma peça de propaganda. Em 1896, o cineasta belga Camille Cerf (1862-1936) foi incumbido de mostrar o que aprendera com os irmãos August (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) e registrar a coroação do czar Nicolau 2° no Kremlin, o Parlamento russo, em 18 de maio de 1896. Nascia, de um jeito meio atabalhoado, autoritário e involuntariamente plural, o rudimento de uma indústria que, claro, já viveu dias melhores, mas que de quando em quando dá um enérgico sinal de vida e surpreende.

O primeiro filme produzido na Rússia pode até não ter passado de uma escandalosa  louvação a uma forma sutil — ou menos evidente — de tirania, alijada do poder 21 anos depois por outros déspotas, mas a despeito das mudanças de regime, da ascensão bolchevique e da barbárie que se lhe seguiu no subcontinente, o cinema russo não se calou. Em 1925, o diretor letão Serguei Eisenstein (1898-1948) levou à tela o protesto de marinheiros por melhores condições de trabalho da única maneira que sabia. Trata-se de “O Encouraçado Potemkin”, que, como não causa espécie a ninguém, se passa em 1905, ainda na vigência do Império dos Romanov, que se estendia desde 1613. Essa audácia dos pioneiros da produção audiovisual russa, tanto na substância como na superfície, continua a definir as histórias que saem da Rússia e ganham o mundo, graças à sensibilidade do público, que não confunde um povo e sua arte com os homens perversos que periodicamente chegam ao poder.

“Major Grom Contra o Dr. Peste” (2021) segue esse postulado à risca. O filme de Oleg Trofim conta com nada menos que sete (!) roteiristas, talvez um resquício do modus operandi socialista. Há mesmo alguma coisa de nostálgico na distopia neorrealista de Trofim, mas, felizmente, sem proselitismos de nenhum gênero. O enredo não tem nada de mirabolante: o investigador desajustado a que o título se refere não tem muita paciência para protocolos e códigos de ética e acaba resolvendo seus casos da maneira mais eficiente que conhece, literalmente no braço, já que nunca usou armas. O que faz com que a história cresça é a maneira que o diretor encontra para assinalar as diferenças entre o protagonista, um anti-herói que não tem a menor preocupação de agradar quem quer que seja, nem o público — e, por essa razão mesma, agrada — e o vilão declarado e seu entorno, que passaria tranquilamente por um paladino do bom, do justo e do belo, mormente em tempos em que, como na cacotopia orwelliana, palavras adquirem sentido oposto ao que deveriam querer significar.

O filme de Trofim tem alma, e essa alma te nome. Tikhon Zhiznevskiy personifica o que, no fundo, todo cidadão de bem espera dos poderes institucionalmente constituídos, sobretudo da polícia. A sequência de abertura, em que o major Grom parte numa caçada a pé, bem ao seu gosto, atrás de bandidos que acabaram de assaltar um banco e agudizam a atmosfera de caos deixando um rastro de cédulas pelo caminho, escapando num furgão repleto de sacos de rublos com a porta aberta, dá uma medida inicial do que o longa irá propor. A empreitada de Grom, por óbvio, só o que faz é expô-lo ao ridículo, e no comissariado, as apostas sobre o dia em que esse mártir incompleto será afinal demitido são o grande passatempo da equipe, composta basicamente por policiais gordos, frustrados e muito inoperantes. Tudo o que o protagonista evitou a todo custo ser ao longo de sua malfadada carreira.

Há respiros interessantes em “Major Grom Contra o Dr. Peste”, como a interação entre o protagonista e o estagiário Dima Dubin, interpretado por Aleksandr Seteykin, e a sugestão do envolvimento amoroso de Grom com Yulia Pchelkina, a youtuber que se dedica a postar vídeos de investigações de Lyubov Aksyonova. Ainda que não se concretize, esse arco é o que dá a graça de que um filme renitentemente linear como esse precisa. A forma como Yulia entra na vida do detetive é um dos acertos de Trofim, se não o maior, ao juntar ação, violência, drama e romance num único segmento. A parceria entre Aksyonova e Zhiznevskiy é o que consegue fazer da narrativa algo pouco menos descartável, não obstante o núcleo vilanesco, composto por Sergei Goroshko como Sergei Razumovsky, o magnata que patrocina o Dr. Peste de Dmitriy Chebotarev ter seus momentos de destaque, principalmente ao também apenas insinuarem, como Grom e Yulia, formarem um casal.

Como há quase cem anos, o cinema russo continua a se prestar como um dos que mais observam a necessidade de representar múltiplos pontos de vista, o que não deveria, mas é prova de coragem de Oleg Trofim e seu elenco. Querendo ser apenas um filme que entretém, “Major Grom Contra o Dr. Peste” igualmente se deixa absorver sob a ótica da experimentação. E isso também é divertido.


Filme: Major Grom Contra o Dr. Peste
Direção: Oleg Trofim
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.