Simples, brutal e angustiante, filme da Netflix vai fazer seu coração sair pelos olhos Foto: Divulgação / Netflix

Simples, brutal e angustiante, filme da Netflix vai fazer seu coração sair pelos olhos

O cinema espanhol tem ido longe. Plena de profissionais de genuíno talento, a indústria cinematográfica da Espanha precisou trilhar um caminho pedregoso até se tornar uma das mais vigorosas do mundo. Lutando com mais ímpeto contra a ditadura de Francisco Franco (1892-1975) a partir do início dos anos 1960, quando começa a se modernizar, o cinema espanhol legou à humanidade obras-primas como Viridiana (1961), dirigido por Luis Buñuel (1900-1983), e Carmen (1983), de Carlos Saura. Pedro Almodóvar é decerto o mais célebre dos diretores espanhóis hoje, mas a produção de filmes vindos da daquela terra meio mágica incrustada na Península Ibérica ao longo do século 21 vai muito além dos excelentes “Dor e Glória” (2019) e “Mães Paralelas” (2022). Em “Abaixo de Zero” (2021), Lluís Quílez dá sua contribuição ao gênero do suspense de terror, incluindo ao roteiro, coescrito com Fernando Navarro, elementos característicos dos dramas de Almodóvar. O argumento parece não ter mistério, e é precisamente esse o pulo do gato que faz a história crescer.

Em Cuenca, nordeste da Espanha, dois policiais dão expediente, tentando vencer os incômodos de uma noite de inverno rigoroso. É o primeiro dia de trabalho de Martín, encarregado de dirigir o ônibus que vai transportar sete presos de alta periculosidade de uma penitenciária a outra, atividade banal, segundo lhe faz parecer Montesinos, o colega escalado para acompanhá-lo. Já nas primeiras sequências do longa, resta óbvio o antagonismo entre os personagens de Javier Gutiérrez — admirável como em “A Casa” (2020), levado à tela pelos irmãos Àlex e David Pastor, e “O Autor” (2017), de Manuel Martín Cuenca — e Isak Férriz. Enquanto Martín é um pai de família respeitável e amoroso, Férriz confere a seu personagem o aspecto algo vilanesco de um homem que não vê impedimento ético algum em burlar regras, por mais inofensivas que sejam, como a que proíbe que agentes usem brincos quando em serviço, por exemplo. Como se vai assistir não muito tempo depois, essa displicência moral de Montesinos há de ser um empecilho a mais na já turbulenta jornada dos oito homens pela noite de gelo.

A viagem é feita à noite justamente por questões de segurança, mas as coisas começam a dar sinais de que não vão bem já na revista, quando todos os presos são submetidos a um exame minucioso, a fim de se evitar o tráfico de drogas e o porte de armas brancas. Ramis, do grande Luis Callejo, também é inspecionado, mas assim mesmo, consegue passar com um pequeno artefato de mental, de que vai se valer num momento específico. Junto com Ramis seguem Nano, personagem de Patrick Criado; Rei, de Édgar Vittorino; o romeno Mihai, vivido por Florin Opritescu; Chino, interpretado por Àlex Monner; Golum, papel de Andrés Gertrúdix; e Pardo, do veterano Miquel Gelabert Bordoy, cada um cumprindo uma pena diferente, mais ou menos aviltante, e todas inspirando atenção redobrada de Martín e Montesinos. À medida que avançam pela estrada, invadida por um nevoeiro incessante e que só faz crescer, os nove homens se aproximam juntos de um destino em comum que os irá obrigar a transigir quanto às diferenças a fim de que tenham alguma chance de permanecer vivos.

Quílez leva a narrativa de “Abaixo de Zero” para o suspense profundo ao submeter seu filme ao primeiro anticlímax. O ônibus para de maneira brusca e inexplicável, o caos e o terror vão se instalando, ninguém sabe se Mihai fala a verdade quando diz que seus amigos criminosos vieram resgatá-lo ou se está apenas tentando contar vantagem diante dos outros presos e, do lado de fora, Martín procura entender o que está acontecendo, quando encontra Montesinos. Algumas sequências depois, resta claro que o romeno se aproveitara da tragicidade da situação para despertar a inveja dos colegas. Algo de errado toma curso na operação, mas o motivo da desordem é a entrada em cena de Miguel. O tipo marginal vivido por Karra Elejalde é um justiceiro que deseja acertar as contas com Nano, autor de um crime bárbaro contra sua filha. Na iminência do encerramento, em trechos muito semelhantes à perseguição ao personagem de Ben Foster em “A Qualquer Custo” (2016), de David Mackenzie, “Abaixo de Zero” coroa 106 minutos de uma história muito bem executada, que entrega muito mais do que promete e ferve à hora certa. Os trechos protagonizados por Gutiérrez, Elejalde, que confirma o desempenho impecável já visto em filmes de temática distinta, como “100 Metros” (2016), dirigido por Marcel Barrena, e Criado, ótimo em “1898 — Os Últimos das Filipinas” (2016), de Salvador Calvo, dão novo impulso ao filme, que fecha todos os arcos e não deixa que nada sobre nem falte.

“Abaixo de Zero” termina no momento adequado, momento em que a trama, uma das mais originais do originalíssimo cinema espanhol, está quente, exalando fumo. Pleno de personagem únicos, que ganham vida pela interpretação esmerada de atores cuja aptidão espanta, a tensão no filme de Lluís Quílez derrete a geleira mais empedernida.


Filme: Abaixo de Zero
Direção: Lluís Quílez
Ano: 2021
Gêneros: Suspense/Drama/Terror
Nota: 9/10