Todo romance é sobre literatura. Todos os que contam, pelo menos, como nos lembra “Shosha”, de Isaac Bashevis Singer, lançado originalmente em 1978, o mesmo ano em que o autor ganhou o Prêmio Nobel. A linhagem é conhecida. “O Quixote” que se debruça sobre si mesmo na segunda parte do texto de Cervantes é o exemplo canônico da ficção com autoconsciência. O jogo não tem fim e chegou ao auge com as experiências do século 20, de James Joyce a Guimarães Rosa.
Mas, longe de ameaçar a sobrevivência da arte, monumentos da conflagração literária como “Ulisses” e “Grande Sertão” beberam na fonte dos clássicos, sinal de que a criação literária, há tempos, alimenta-se da reflexão sobre o que se escreve e dela faz sua principal trama. Nas “Mil e Uma Noites”, o núcleo do drama não são as histórias contadas por Sherazade, mas sim o fato de contá-las, o que representava a anulação da pena de morte decretada pelo rei. Em Rosa, o livro é o confronto entre o contador e o ouvinte fictício. O objetivo é nobre. A arquitetura da narração, por mirar-se no espelho, torna-se real, só para contaminar os personagens. Riobaldo e Diadorim tornam-se de carne e osso, enquanto acontece o reverso no projeto, pois não existe nada mais inventado do que o doutor que chega de longe para escutar o velho jagunço. Esse é o segredo do romance, que jamais se entrega ao que quer contar, antes denuncia a sua impossibilidade. Ao desistir (sem se entregar) ele consegue atingir a essência da produção de um escritor de verdade.
Não há disfarce maior do que o romancista confessar que é apenas um contador de histórias. A crítica costuma embarcar nessa canoa, achando que o inventor deixou para os outros o principal da obra. Não é preciso ler um ensaio para conhecer as intenções de um romancista e a certeza que ele tem de não conseguir enganar ninguém com seus truques. A não ser que desvie a atenção do leitor para as paragens do mural que constrói, até levá-lo pela mão para ver o que existe atrás da parede pintada (quando acontece, então, a revelação). Quem conta uma história diz como e por que conta, pois todo escritor aspira à eternidade, e não há alma imortal na literatura que se enrede na própria teia. O escritor sabe: quando o livro acabar e a vítima acordar de seu devaneio, e tardiamente descobrir a cama-de-gato preparada, voltará as costas para a obra (essa é a origem dos livros datados e esquecidos). Mas se o próprio livro disser do que se trata, então a fidelidade é absoluta. Amor ou amizade precisam da verdade, e a verdade são letras sobre papel. À parte isso, “Moby Dick” nos espera para nos engolir.
As ciências da linguagem fizeram uma abordagem dúbia sobre essa vocação, pois descobrir o truque implicava, muitas vezes, dissecar a cobaia. O romance seguiu em frente graças à insistência do gênio de autores como Jorge Luis Borges, que reinstaurou a magia do livro dentro do livro, do autor fictício, do narrador que terceiriza a autoria para deflagrar o eterno retorno do maior dos encantamentos, o da leitura. No fundo, os livros inventados dentro dos livros reais são o que pensam ser a literatura, enquanto a própria vai sendo desenrolada, como um novelo de surpresas, enquanto avançamos nas páginas.
Singer, em “Shosha”, tem a seu favor um tempo específico, a Varsóvia dos anos 1930, antes da invasão de Hitler. Uma cultura que se presta a todos os equívocos, a dos judeus, e que em “Shosha” revela toda a grandeza da sua universalidade, já que nada escapa ao olho clínico e crítico dos próprios judeus, não só sobre Deus, o mundo e o universo, mas sobre os limites da vivência inspirada nos textos sagrados. Com esses instrumentos, Singer nos brinda com o pesadelo do escritor que tentou viver de seu ofício enquanto o mundo desmoronava.
O umbigo desse mundo é a Rua Krochmalna, onde o narrador, inventado, passou a infância. A metáfora dessa época é a pequena Shosha, o espírito infantil que se recusou a crescer e a amadurecer e que funciona como um ímã para o escritor, que tenta escapar da ética (que num tempo de chacais é a maior das maldições, mas a única que leva à grandeza). A obra inverossímil, que sustenta as aspirações do escritor-personagem, é uma peça iídiche, encomendada por um milionário americano, casado com uma artista judia e desencantada. Não são as intenções do autor que fazem fracassar o projeto, é o seu destino. O embate entre o que está escrito e o livre-arbítrio é a linha que costura o livro. Conseguirá o escritor o sucesso para escapar da ameaça de invasão de Hitler? Poderá mentir e fazer concessões o suficiente para tornar-se um profissional do ramo? Ou terá que arrostar seu pecado original (a vocação legítima) como um fardo, como quem carrega uma criança doente nos braços, com a qual assume núpcias criticadas por todos?
Singer tenta nos seduzir com seu jogo de infinitas possibilidades para o jovem escritor que tem estrela e pode sair rico da empreitada. Mas nos carrega de volta para a rua da infância, onde tudo está condenado, não apenas os mortos que assombram os sótãos, mas os vivos que aguardam o Holocausto. A mestria do autor, o verdadeiro, constrói não só uma rua, inesquecível, mas uma cidade, impressionante pela diversidade, e um mundo, em colapso evidente. Deveríamos já conhecer essa história, mas é como se fosse contada pela primeira vez. O escritor fictício derrama-se em literatura verdadeira enquanto tenta compor a peça ditada pelos interesses financeiros. Um outro romance irreal entra pelas frestas da sua escrivaninha como um fantasma que se desdobra em mistérios.
Poderia ser uma história sem surpresas, mas essa é a parte principal da leitura. O morto que continuou dando comida aos pobres, a irmã defunta que visita a casa materna, a neve seca iluminada em meio ao ermo de uma viagem de trem convive com seus opostos: os prazeres com muitas mulheres, os restaurantes de mesas fartas. As limitações religiosas chocam-se com o deboche, a modernidade penetra as escrituras, o mal rola na cama com a inocência.
Ao assumir suas origens, o escritor que quase caiu na tentação do dólar recompõe a humanidade que perdeu, mas descobre que a vida são páginas de um livro que jamais voltam para trás. As cenas continuam lá, escritas, mas não podem ser revisitadas. O universo simultâneo cerca Singer com suas garras de ferro e só há um jeito de escapar de tantas fronteiras: o deixar-se levar pelo inevitável e assim descobrir que não há respostas quando a consciência está desperta.
O que fica não são as perguntas, mas um livro que abraçamos porque não mente. E que deveria ser sobre uma cidade ainda viva onde podemos aportar. Mas sabemos que jamais chegaremos à Varsóvia recriada por Singer. Ele nos diz com todas as palavras que isso é impossível. A única coisa que nos resta é entender o poder da literatura, a que serve a refeição depois de nos mostrar a feira. E que acende a vela sem chama suficiente para resistir ao sopro misterioso do divino.