O livro de sangue de Cormac McCarthy

Nossos parâmetros mudam com a experiência, e isso inclui a experiência literária. “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, teria tudo para ser o romance mais sinistro do século 20, até o aparecimento de “Meridiano de Sangue”, de Cormac McCarthy: o livro, nos domínios da alta literatura, mais diabólico que existe.

As duas obras guardam uma semelhança fundamental: são baseadas no encontro (que resulta em choque traumático) entre aquilo que o pensamento colonialista da era liberal designou de “civilização e barbárie”. Lá, europeus que invadiram o Congo; aqui, norte-americanos que invadiram as terras mexicanas e indígenas. 

De lá para cá os conceitos mudaram, mas o contexto é aquele mesmo de um século e meio atrás, apesar de “Meridiano” ter sido escrito em 1985. No caso de McCarthy, ao contrário de tantas versões romantizadas, não é uma visão idílica da expansão americana em direção ao Pacífico. É uma visão de terror, em que os yankees são os terroristas da vez: tão perversos quanto os seguidores de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico. Muitos árabes e palestinos talvez gostariam de jogar essa visão na cara dos judeus e de seus defensores do Ocidente: é ficção, mas possui incômodas analogias históricas. Diga-se a verdade, é inspirado na História.

Falar em expansão sugere movimentos de massa como objetivos sedentários. Pioneirismo, sob cujo estandarte avançaria também o progresso material e espiritual. É de outra coisa, em regra associada a tais fluxos, que falamos; por assim dizer, da face mais obscura dessas grandes aventuras que normalmente classificamos de “heroicas”, típicas do Novo Mundo. A publicidade e o cinema americano nos deram versões bonitinhas daqueles carroções cheios de corajosas famílias puritanas sendo atacadas por índios maus, de pele vermelha. Nem sempre ficou claro que era uma inversão de valores, para justificar uma invasão em massa: os sem-terra da burguesia ascendente invadindo a propriedade dos nativos. A História é cheia dessas ironias instrutivas.

Limpeza étnica era política de Estado dos governos norte-americanos no século 19. A desculpa de sempre, nas disputas territoriais visando à demarcação de fronteiras: os aborígenes (Apaches, Sioux, Cherokees, Comanches, Iroqueses, Gilenos etc.) representavam um obstáculo para o progresso econômico capitalista e à integração nacional do país, que agregou também o Sul agrário, muito semelhante ao Brasil colonial. Estima-se que, em seu movimento para o Oeste, 23 milhões de índios foram dizimados: três vezes o número de judeus mortos pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Além do componente econômico pesava, ainda, a variável cultural do racismo, uma vez que a miscigenação — ao contrário do que aconteceu largamente no Brasil — estava fora de questão para o invasor: brancos judaico-cristãos oriundos da Nova Inglaterra (atual costa Oeste dos Estados Unidos). Uma espécie de “pessoas de bem”, daquela época.

A política anti-indigenista tornou-se abertamente agressiva com um dos mais respeitados presidentes do país, o democrata Andrew Jackson (1829-1837), que mereceu de André Maurois, biógrafo francês, o seguinte retrato: “Mal grado seus duelos, suas pragas pitorescas e seus acessos de cólera, lia a Bíblia e tinha a dignidade e as maneiras cavalheirescas do Sul”. Conhecemos bem o tipo, mas nada disso adiantou muito ao cidadão exemplar do Tennessee. A promulgação do “Indian Removal Act”, de 1830, permitiu a este homem do povo segregar mais de 16 mil índios do Sul no estado de Oklahoma, a Oeste do Rio Mississippi. Tais deslocamentos populacionais ficaram conhecidos como Trail of Tears (Rastro de Lágrimas).

Edições brasileira e portuguesa de Meridiano de Sangue

Milhares de nativos morreram de doenças e de esgotamento, nessas longas jornadas excruciantes, sob a vigilância do Estado, que contava não apenas com o exército regular para fazer cumprir a lei. Também milícias contratadas por governos estaduais, com a finalidade de matar os nativos, eram comuns no Velho Oeste. Eis o cenário montado para que a gangue de Glanton (bando sanguinário de “Meridiano de Sangue”) entrasse em ação, à cata de escalpes: couro cabeludo arrancado de forma violenta.

O livro de Cormac McCarthy está perfeitamente contextualizado, não só porque a história narrada reflete o Terrorismo do século 19, nos EUA, mas também porque o Terrorismo continua traumático, na História do século 21. Como um profeta, o romancista ligou as duas pontas e colocou seu país diante do espelho. 

Os bárbaros de Cormac McCarthy

Não há, é claro, registro, na História norte-americana, de uma tal gangue de Glanton. É uma invenção de McCarthy, cheia de personagens perfeitamente individualizados: Toadvine, Padre Tobin, Jackson Negro, Webster, o próprio Glanton, o chamado “rapaz” (Kid) e juiz Holden. Os três últimos são centrais à trama, em especial Kid e Holden: o romance começa com a fuga sem rumo daquele e com a perseguição que este lhe impõe, até matá-lo. O centro da história pode ser essa perseguição, e a pergunta essencial talvez seja: o que os dois representam, afinal?

É até possível identificar a conjuntura política em que atuam: estamos em meados do século 19 nos EUA, no Velho Oeste, em algum momento entre os governos de James Polk e Abraham Lincoln, quando o estado mexicano de Chihuahua, fronteiriço ao Texas, foi de fato governado por Angel Trias, personagem histórico com quem os caçadores de escalpe brindam, no capítulo 13.

Contratada para matar os nativos, a “sociedad de guerra” ou “alma comunitária” — assim a define Mccarthy, em dois momentos — vaga pelos confins de um vasto território que, tendo constituído a maior parte do México, passara as mãos dos Estados Unidos sob o governo anexionista do então presidente James Polk. Foi quando o Rio Grande constituiu oficialmente a fronteira entre os dois países, chancelada pelo tratado de Guadalupe-Hidalgo (1846-1848).

Os Estados Unidos estavam, ainda, longe de tornar-se uma potência — 1890 é a década de virada, e levaria ainda meio século para sobrepujarem o Império Britânico —, mas já tinham ambições desmedidas, claramente imperialistas, em pleno acordo com uma tendência mundial crescente, que incluía outros países da Europa e o Japão.

O arcabouço ideológico vinha-se sedimentando desde a independência, no século anterior, e fora recrudescida por uma expressão criada pelo jornalista John L. O’Sullivan no “New York Morning News”, em dezembro de 1845, e antes pela Doutrina Monroe, de 1823. Segundo a mãe de todas as doutrinas de Estado norte-americanas, nosso continente, do Alasca à Terra do Fogo, devia se submeter aos interesses geopolíticos daquele país, livre da ingerência europeia. Desde então a América Latina tem sido tratada como quintal dos Estados Unidos — a começar pelo México.

Havia um conteúdo profundamente racista nessa convicção, segundo o qual os nativos americanos, e mesmo os mestiços com espanhóis, eram incapazes de se autogovernar, dada a sua “inferioridade” genética frente aos invasores de origem anglo-saxônica, supostamente escolhidos, nas palavras do exaltado periodista O’Sullivan, pela Divina Providência. Grécia e Roma, como nos tempos antigos, foram reeditadas por uma civilização do século 19, em sua presunção de modelar a alteridade conforme seus valores, costumes e paradigmas de organização social. Em “Meridiano de Sangue”, essa ambição, com todas os seus preconceitos, é expressa por um certo capitão White, no capítulo 3. A História é um personagem central do romance.

Considerando os mexicanos, eis o que diz o chefe militar da primeira expedição — uma espécie de Salvador — na qual Kid se integra: “Estamos em presença de um povo manifestamente incapaz de si governar a si próprio. E sabe o que acontece aos povos que não conseguem governar a si próprios? Nem mais. Vêm povos de fora governá-los”. Ou ainda: “Nós seremos os instrumentos de libertação numa terra sombria e turbulenta”. Um importante historiador equatoriano, Jorge Nuñez Sanchez, chamou essa postura de “negativo ideológico” da consciência social norte-americana.

Mas quem seriam os bárbaros, nessa tragédia de feições épicas? Aqui a coisa se complica, já que nenhuma versão fica de fora, ainda que nos simpatizemos com a última. Para White e seus comandados, são os mexicanos. Para a expedição punitiva liderada por Glanton, em seguida, são os aborígenes. E para o narrador (McCarthy?) é o homem branco, vindo das ilhas britânicas em direção à Nova Inglaterra, deixando atrás de si, sempre a caminho do Ocidente, uma impressionante trilha de sangue.

Os horrores que essas disputas territoriais causaram desafiam a linguagem, mas McCarthy não se intimidou. Por mais sádico que pareça, de sua parte, “Meridiano de Sangue” é uma tentativa de imprimir na memória comum algo que não pode jamais ser esquecido: a maldade humana. E como esquecer quando a arte é tão precisa?

Da História ao coração do homem

A violência contra animais e pessoas é uma regra do livro. Exemplos (e todos são extremos): a matança das mulas num despenhadeiro, o descarnamento de milhares de bisões nas pradarias do Texas, a degola de Jackson Branco por Jacson Negro, e por aí vai, a cada dez páginas ou menos. Não é um livro para pessoas delicadas.

De toda a sequência, talvez o episódio mais nauseante seja este (edição portuguesa, tradução de Paulo Faria): “Na terceira noite agacharam-se atrás das velhas muralhas esfareladas de adobe, com as fogueiras do inimigo a menos de uma milha de distância no deserto. O juiz sentou-se diante do fogo com o garoto Apache e brincou com ele e fê-lo rir e deram-lhe carne curada e ele quedou-se acocorado a mastigá-la e a observar gravemente as figuras que passavam à sua beira. Cobriram-no com uma manta e de manhã o juiz estava a baloiçá-lo num joelho enquanto os homens selavam os cavalos”.

Na sequência, McCarthy usa um truque narrativo infalível, ao quebrar a expectativa com uma conjunção adversativa e surpreender o leitor, e de forma absolutamente perversa: “Toadvine viu-o [ao juiz] com o garoto ao passar com a sela nas mãos mas quando regressou dez minutos depois a conduzir o cavalo pela arreata o garoto estava morto e o juiz escalpara-o”.

É uma cena tão chocante que até mesmo Toadvine, mercenário e assassino profissional, reage de forma inesperada: “Toadvine encostou o cano da pistola à grande cúpula da cabeça do juiz.

“Diabos te levem, Holden.” “Ou disparas ou tira isso daí. Decide-te.” “Toadvine enfiou a pistola no cinto. O juiz sorriu e limpou o escalpe à perna das calças e pôs-se de pé e virou as costas.”

Pela chave interpretativa que propomos, o juiz Holden bem pode ser símbolo daquela maldade, que justifica o Terrorismo e não se consegue eliminar da História humana. É disso que trata o livro, em parte. Certas reflexões contidas na obra nos levam a essa conclusão. Senão vejamos.

No início de sua longa deambulação em direção ao Texas, Kid encontra-se no deserto com um eremita, que lhe dá abrigo. Enquanto conversam sob a tenda, à noite, outro símbolo aparece, das mãos do velho: “Virou-se e remexeu no meio das peles e estendeu ao rapaz, por cima das chamas, um objeto pequeno e escuro. O rapaz fez girar o objeto entre os dedos. Um coração humano, seco e enegrecido”.

Pouco depois o mesmo dirá, sobre o homem: “Pode entender o próprio coração, mas não quer. E faz muito bem. O melhor é nem espreitar lá dentro. Não é o coração de uma criatura que esteja no caminho que Deus lhe traçou. Encontra-se a ruindade na mais mesquinha das criaturas, mas quando Deus criou o homem tinha o diabo à sua ilharga. Uma criatura capaz de tudo, capaz de criar uma máquina e uma máquina para criar a máquina. E maldade que se perpetua sozinha durante um milhar de anos, sem ser preciso alimentá-la”. 

O tema é novamente referido adiante, em forma de parábola, quando Kid cruza com um velho correeiro dos Alleghenies: “O viajante concluiu dizendo ao velho que ele estava perdido para Deus e para os homens e que assim continuaria até que o seu coração acolhesse o seu semelhante com o mesmo calor com que se acolheria a si próprio caso desse consigo mesmo na penúria, à deriva nalgum lugar deserto do mundo”.

Praticamente não há sinais de bondade ou solidariedade em “Meridiano de Sangue”, mas a fala, acima, é muito assertiva. Parece um recado ao leitor, acerca do único caminho possível para nos livrar do torvelinho de coisas ruins que assola nossa existência coletiva. Outra evidência, além do coração: em sua passagem por um vilarejo, Kid entra de casa em casa, numa das quais encontra coisas coladas à parede. Uma delas é “uma carta de tarot que era o quatro de copas”. Ao pesquisar a respeito, fica-se sabendo que a mensagem desse arcano é: “repensar a própria vida”.

É como se McCarthy transitasse da História ao coração do homem, a fim de esconjurar a seguinte afirmação do diabólico juiz Holden: “A verdade acerca do mundo (…) é que tudo é possível”. É uma sentença vulgar, porém verdadeira.

Depois do genocídio dos nativos norte-americanos no século 19, do Holocausto dos Judeus e do 11 de Setembro, quem duvida dela? Que horrores ainda vamos ver no curso da História, se não repensamos nossa vida?