Meu namoro com Clarice Lispector

A paixão por esta mulher — meio mito, meio esfinge, meio nuvem — começou muito cedo. Por volta dos meus 18 anos. Hiperativa, mocinha-criança-projeto de gente, eu perambulava pelas interrogações dos dias sempre com a cabeça acesa.

O coração, inevitavelmente doce. De uma doçura esparramada pelas surpresas da rotina, tomando conta de tudo, sempre. Mais curiosa e farejadora que os felinos, eu deslizava pela vida, entre atenta-e-desligada, num melódico movimento.

Garota faceira, travessa, intrigante. Achava que as calçadas das ruas eram tapetes. Ritos urbanos, ramificados em braços afáveis, estendidos devagar nas curvas do Rio de Janeiro.  Para mim, o único objetivo desta cordial geografia era o de me receber, estava certa disso, nas minhas andanças constantes por bairros cariocas.

Vez por outra me flagrava cortejada, nos espelhos dos olhos pedintes, quase licorosos, dos transeuntes. Hormônios, seduções e segredinhos de quem também descobre, aos poucos, as ondulações internas nas montanhas russas do corpo, habitante de um parque de diversões chamado vida.

Saía, bebia, estudava, fazia terapia, lia muito, me divertia, dançava sempre. Amava me enfeitar de palavras, metáforas coloridas, fantasias saídas das estantes, para decorar, com exclusividade, meu colo adolescente.

Desde pequena, ainda portando lancheira nos recreios do colégio, comecei a colecionar passeios literários. Viagens exclusivas, paisagens febris, catalogadas uma a uma no armário branco do meu quarto — destinado a acomodar sonhos, ainda vindouros.

Foi quando conheci Clarice Lispector. Analógica, tangenciável. Rosto denunciando enigmas.  Hieróglifos da alma. Olhos rondando a noite, de formato quase oriental. Pele alva. Quase transparente. Boca desenhada para murmurar histórias e ficções, ouvidas apenas pela escuta atenta de veias e artérias. Eu andava sempre com um livro dela na bolsa. “A Paixão Segundo G.H.”

Conversava com Pedro, na ocasião, seu filho mais velho, na clínica aonde ambos fazíamos terapia, quando inesperadamente Clarice surgiu — transportada por um silêncio régio e chuva torrencial. Noite sem estrelas, olhar esgazeado, cabelos úmidos, ela entrou na sala trajando uma capa de chuva cinza e um imponente guarda-chuva. Imaginando tratar-se de miragem, balbuciei trêmula. “Clarice… eu… te adoro.”

Clarice me observou sem pressa.  A seguir passou delicadamente as costas da mão por meu rosto adolescente. Disse, então: “Lindaaa”. Eu sorri desajeitada, incrédula, mas consegui revelar: “Clarice, tenho um livro seu, que é minha leitura de cabeceira, aqui comigo. Você escreve algo pra mim?”.

“Qual é seu nome”, indagou? Eu respondi, ela me estendeu a mão novamente, esperando que lhe entregasse a obra. Então se acomodou num canto do sofá defronte ao que  me encontrava, conversando com seu filho. Instantes depois me devolveu o livro, exibindo um sorriso discreto, acrescido da  dedicatória. “Para a Graça, linda, inteligente e tão sensível, desejo toda a felicidade que merece. Sua Clarice”.

Houve mais três encontros com Clarice, depois desse dia. Na segunda vez, intermediada por seu filho Pedro, fui à sua casa.  Vestida de verde musgo, roupa recém-adquirida para tão importante ocasião, combinando com meus olhos de mel e azeitona e cabelos quase louros.

Levei um presente. Um long play, contendo músicas de Antonio Vivaldi, executadas pelo sexteto de cordas italiano I Musici. A faixa que mais me encantava era um concerto para bandolim, cordas e contínuo em sol maior.

Ainda não tinha completado 19 anos, quando a revi. Escrevi então no verso da capa do disco,  com a respiração entrecortada: “Para a esfinge que divinizei, meu sonho, meu labirinto, meu acalanto. Tão rica e tão rara como a mais fina seda do Oriente”.

Clarice olhou para mim, acendeu um cigarro, perguntou se eu tomava um café. Aceitei. Conversamos um pouco.  Logo atrás do sofá, na sala de estar, havia uma máquina de escrever preta, rodeada de papéis sobre uma pequena mesa. Na ocasião, Clarice morava com sua secretária e assistente, Olga Borelli, que a auxiliava na digitação dos textos — pois a mão direita de Clarice apresentava, anos depois de grave incêndio no quarto de dormir, ainda as sequelas do acidente.

Olga naquele momento não estava. Foi quando, quase atropelando as palavras, confessei meu encantamento por outro livro de sua autoria que acabara de ler. “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” — cuja história, belíssima, contava as nuances do amor de Ulisses e Lóri (Loreley). Em seguida, entreguei a ela um retrato meu, de que gostava especialmente. Um pouco depois nos despedimos.

Alguns anos depois, novo milagre acontece. Meados da década de 1970. Nós reencontramos inadvertidamente no corredor contíguo à  redação da revista “Fatos e Fotos”, onde eu trabalhava como repórter. Clarice havia sido convidada pelo editor Justino Martins para escrever como cronista, no lugar de Nelson Rodrigues, ex-colaborador da publicação.

Clarice me olhou nesta tarde, como se tentasse desvendar alguns dos meus abismos. Fiquei ruborizada, com o escrutínio. Ela sorriu e disse. “Lembro-me de você, menina. Posso lhe pedir para datilografar minha crônica?”

Balancei a cabeça de imediato, afirmativamente. Sentei, com ela ao meu lado. Em certo momento, Clarice afirmou estar com sede. Pediu, olhando em volta, se era possível trazerem um refrigerante para ela e outro para mim. Ao chegar o refrigerante, assim que sorvi o primeiro gole, Clarice  me perguntou baixinho: “Quero beber do seu copo e descobrir seus segredos. Posso?”. “Em seguida, dirigiu-se a uma fotógrafa, Isabel, que trabalhava também na  revista e solicitou:  “Quero que tire uma foto minha  para eu dar a Graça”.

Clarice , como já se sabia , era esquiva, não gostava de se expor, nem de conceder  entrevistas. A foto foi feita. Mas Isabel nunca me entregou, arrumando sempre desculpas. Quando terminei de datilografar sua crônica, Clarice fez uma carícia em meu queixo. Antes de se  despedir, comentou: “Você tem um rostinho de camafeu…”.

Um ano depois, já trabalhando com o  novo editor, Artur da Távola (Paulo Alberto Monteiro de Barros) revi Clarice pela última vez, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário. Paulo Alberto havia me convocado, com outros repórteres, para cobrir seu enterro  e redigir uma matéria sobre a sua morte.

Não sei como consegui, quis desistir da tarefa. Entretanto, Paulo me advertiu, passando o braço afetuosamente sobre meus ombros: “Você é uma profissional, Graça, sei que pode cumprir seu papel”.  Não entendo como, enfrentei o trágico evento, meio ligada no automático. A dor. As lacerações internas. As despedidas definitivas de Clarice Lispector.

Porém nem tudo se foi. Restaram várias sementes deste cúmplice namoro.  As lembranças de Clarice, mais férteis que nunca, permanecem vivas. Frequentando minhas memórias à vontade.  E fazem isso, sem ao menos me pedir licença.