Eu não mereço ser encoxado

Eu não mereço ser encoxado

Quando me dei conta, tinha um sujeito bufando atrás de mim, e não era um zagueiro de futebol fazendo uma marcação homem a homem, embora, admitamos, a vida é um jogo escroto. Aconteceu que eu viajava em pé dentro de um metrô lotado quando, sem que eu percebesse — juro por Deus, prezados ateus! — um camarada esfregou-se pra valer na minha mochila de couro de ornitorrinco (suponho que, na confusão do aperto, o folgado supusesse que a tal mochila não era uma mochila, se é que me entendem) ao ponto dele ouvir os sininhos dobrarem e quase acender um cigarro dentro daquele compartimento infernal hermeticamente fechado, o qual os gestores públicos chamam, cinicamente, “meios de transporte em massa”. Massa mesmo seria que os encoxadores contumazes se ocupassem com eles, pois, a cambada de burocratas jamais carrega mochilas. Quando muito, os safados carreiam dólares nas meias ou nas cuecas.

Não só parece inverossímil, como, de fato, é a mais pura e deslavada mentira o que acabo de lhes contar. Não fui vítima de um encoxamento gay, graças ao ornitorrinco (que Deus o tenha no Céu dos animaizinhos!). O que eu desejo mesmo é contar-lhes a respeito de Narciso, que foi capturado por populares, por conta de um comportamento impopular dentro de um trem abarrotado de coitadinhos com destino a Cudojudas.

“Todas querem dar pra mim”, deu nas manchetes dos principais jornais da cidade, constou no beó, e ele teria dito isto à delegada de plantão, aos colegas de sela do pavilhão, aos capetas em serão, e a este muito pouco inspirado cronista que vos escreve. Mesmo com aquela cara de senador da base aliada traído pelos correligionários exposta nas páginas policiais, eu reconheci imediatamente que o abusador era Naninho, um colega de infância que, dentre as inúmeras traquinagens concebíveis naqueles tempos, era um expert, um bam-bam-bam, um fominha, um viciado em troca-troca às margens do Rio Descalabro, point frequentado pelos pescadores e pela meninada atoa.

À época, Naninho parecia-me um moleque tresloucado. Provavelmente, se usássemos os termos mais brandos da atualidade, ele seria diagnosticado como um menino hiperativo que nem toda a ritalina da Cochinchina daria jeito. Certa vez, ele me disse que, quando crescesse, ficasse rico e famoso — aliás, um sonho ordinário de qualquer criança normal — encheria o cu de dinheiro e uma piscina olímpica com trezentas mulheres nuas para “nadar nelas”, como se ele fosse uma espécie de Tio Patinhas pervertido que, aos invés de cédulas e moedas, nadaria de braçadas sobre tetas e taturanas.

Acho que pelo simples fato de não ter sido deflorado pelo Naninho, em toda aquela disfarçada movimentação da molecada às margens dos ribeirões da nossa infância, senti uma pena danada do sujeito e resolvi visitá-lo no cárcere manicomial. Levei uma maçã e uma bíblia, caso ele tivesse fome. Era uma edição luxuosa do livro sagrado, tão volumosa e bem acabada que seria possível, inclusive, subir nela, como se fora um tijolo, e se enforcar usando os cadarços do tênis, caso necessário. Leitura utilíssima, portanto.

Quando eu disse, em tom de escárnio, que eu era um dos poucos sobreviventes da sua bucólica e repreensível sanha sexual ribeirinha, Naninho quase urinou de tanto rir. O cinquentão confirmou que tinha mesmo gamado e se afeiçoado a uma morena, uma trabalhadora, uma dona de casa qualquer que bem poderia ser a dona do seu coração, uma passageira anônima dentro daquela centopeia de aço que fedia sêmen, suor e propina de empreiteira.

Naninho representava um dos milhões de entrevistados pelo IPEA (Instituto Patético dos Erros Analíticos) os quais concordavam que os tarados estavam cobertos de razão ao atacarem mulheres vestidas para provocar. Uma vez que a onda de encoxamentos nas lotações crescia no país mais do que o próprio PIB dentro da sunga, Naninho arriscou um approach desautorizado e foi detido pelos demais passageiros de agonia com a braguilha aberta, os olhinhos bem fechados e um enigmático sorriso no rosto que o deixava parecido à beça com a Gioconda de Da Vinci.

Naninho recolheu a anaconda às pressas e, graças à interferência de um biólogo bicho-grilo — que por pura coincidência e conveniência deste autor, também viajava naquele impressionante expresso de frouxos humilhados pelo Estado — escapou de ser linchado pela multidão. Aliás, impulsionados pelo simples modismo, pelo desmazelo dos aparelhos governamentais e pela mais completa descrença na justiça, a onda de justiceiros que brutalizavam contra os criminosos crescia a dez milímetros cúbicos por segundo, ou seja, quase tão rápido quanto a ereção de um encoxador experimentado.

Mesmo atrás das grades e sob efeito de um Dry Martini na veia, Naninho, que tantos passarinhos capturou para metê-los nas gaiolas da sua meninice, mostrava-se por demais animado, otimista, confiava na frouxidão do Poder Judiciário, e não parava de sonhar. Valendo-se de um imoral projeto do governo para os apaniguados políticos, chamado “Sacanagem Sem Fronteiras”, ele embarcaria nas próximas semanas para um doutorado-sanduíche em Amsterdam, onde pretendia se aninhar entre duas loiras holandesas de úberes colossais durante seis meses consecutivos.

Nos seis meses subsequentes, às custas do erário, inspirado no holandês Ed Houben, que tem noventa e oito filhos documentados, e que ainda continua na ativa, ele investiria fundo, bem no fundo mesmo, na profissão de reprodutor de aluguel, ao ceder o próprio esperma, as sementinhas de amor, de graça, por pura caridade, sem ônus aos interessados, inseminando à moda antiga, em prol da humanidade, sem uso de cânulas ou seringas, como se estivesse tomando banho com amigos num riozinho do interior da sua infância.

Com os interiores da mente em chamas, ele maquinava que as clientes seriam as viúvas cabaço, as feministas dissidentes, as indecentes arrependidas, as mulheres cegas, as insanas sem visão de futuro, as cadeirantes das academias de letras, as solteironas convictas, as megeras invictas, as poposudas bundas-moles, as lésbicas delicadas, as histéricas de Edvard Munch, as acamadas, as ruins de cama, as depressivas por opção, as modelos com sobrepeso, as muito feias, as bonitonas da bala chita, as desenganadas pela medicina, as enganadas pelos maridos, as gordas mórbidas, as magras gentes-finas, as virgens da astrologia, as ex-putas, as madames em disputa judicial com os maridos, as endemoninhadas, as exorcistas sem alma, as mal amadas, as moças sonhadoras das janelas, as viúvas dos homens-bombas, as mulheres de temperamento explosivo que não toleram o humor negro, a picardia e o sarcasmo.

Depois de reencontrar Naninho, eu lamentei não ter levado um tiro e o livro enorme da mobília, que mais parecia um paralelepípedo, para que ele subisse, senão para saltar dali, ao menos, para discursar aos coirmãos insanos. Daí, então, frente a tal dilema, e como já disse um poeta, atá-lo com os nós que há em nós, empurrá-lo do falso cadafalso, para acabar de vez com mais uma estória que, de tão louca e impressionante, até parece verdadeira.